Capítulo LXII

De como são estimados os parentes do Preste; e do modo diferente que este David quer ter com seus filhos e das grandes provisões aplicadas à serra

Têm ao Preste João, nesta terra, por ser sem nenhum parente, porque da parte da mãe não são havidos, estimados nem nomeados por parentes e da parte do pai são encerrados e havidos como mortos e, posto que lá casem e façam geração, como dizem que têm muitos infindos filhos e filhas, nenhum deles nunca da serra sai, senão como acima dito é, que se o Preste morre sem herdeiro então se tira o parente mais chegado e mais idóneo e pertencente. Dizem que algumas fêmeas saem a casar fora e não são havidas por parentas nem filhas, nem irmãs do Preste, posto que o sejam; são honradas enquanto lhes vive o pai ou irmão e, tanto que lhes morre, são como qualquer outra senhora. Eu vi, e todos vimos em corte, uma senhora que fora filha do tio deste Preste e, posto que ainda andava em esparavel, era mui desacompanhada. Conhecemos um seu filho tão maltratado como qualquer homem de pé, assim que em mui breve tempo, morre seu género e fica sem nenhuma nomeada de parentes de rei. Este rei David Preste que ora é, à nossa partida tinha dois filhos. Diziam que lhes fazia grande gultos, isto é, morgados ou coutos, assinados para eles de grossas rendas. A mim me ensinaram para que parte tinha um deles grandes terras, mas o geral dizer era que, como o pai cerrasse o olho e fizessem um deles rei, que os outros iriam à serra como seus antecessores sem levarem consigo senão seus corpos. Assim ouvi dizer que a terça parte das despesas do Preste se faziam com estes infantes e iflaquitas e que este Preste o fazia melhor com eles do que nunca o fez seu antecessor e que, além das grossas rendas que já para eles eram aplicadas, lhes mandava muito ouro e muitas sedas e outros panos finos e muito sal que nestes reinos corre por moeda. E quando nós chegámos e lhe demos muita pimenta, soubemos, por certo, que lhes mandou a metade dela e lhes mandou dizer que se alegrassem, que el-rei de Portugal, seu pai, o mandara visitar e lhe mandara aquela pimenta. E assim soubemos, por certo, e de vista em muitas partes, que o Preste João nos mais dos seus reinos tem grandes lavouras e terras, como reguengos em nossas partes. Estas partes ou reguengos são lavradas e semeadas pelos seus escravos e com os seus bois. Estes são seus mantimentos e vestidos pelo rei e são mais libertados que nenhuma outra gente e são casados e vêm já de ab initio de escravos e casam uns com os outros. De todas as lavouras que são perto da serra, as mais se vão lá e as outras a mosteiros e igrejas e a pobres, principalmente a fidalgos pobres e velhos e que já tiveram senhorios e os não têm e a nós, os portugueses, por duas vezes, nos mandou dar este pão, a saber, em Aquaxumo por uma vez, quinhentas cargas e por outra vez, no Aquate, outras quinhentas e das lavouras para si não há nada, nem se vende coisa nenhuma e tudo se despende e dá como dito é.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Verdadeira Informação sobre a Terra do Preste João das Índias”, Dir. Luís de Albuquerque, Vols. I e II, Lisboa, Alfa, 1989)