Com todo o segrêdo possível nos partimos da cidade do Deli, uma madrugada, indo vestidos como os Mogores por baixo das lobas, e logo em saindo das portas pera fora, como era escuro as despimos e aparecemos com toucas e cabaias, sem disto terem notícia os próprios Cristãos e moços nossos, que até ali nos tinham acompanhado caminho de Laor; deixado o caminho real, começámos a atravessar as terras del-Rei, por caminhos mais breves que nos foi possível, até que passados quinze dias chegámos ao cabo das terras do Indostão, e ficámos ao pé das serras que são do Rajá de Siranagar. Grandes dificuldades tivemos destas saídas das terras de Siranagar, desta banda nos tinham por Mogores fugidos, e que por nenhum modo nos deixariam passar, antes, presos, nos mandariam a el-Rei, por terem ordem sua pera isso; e confirmavam-se, vendo que nem éramos gentios nem mercadores, pois não levávamos fato; por outra parte os de Siranagar haviam que éramos Mogóis, mandados pera espiar a terra, pelo muito que se temem deste Rei; e passados alguns dias, vendo-nos nestas talas, quando parece se fechavam de todo os caminhos para nós, nos deu o Céu franca passagem, ensinando-nos a pôr só a confiança naquele por cuja glória fazíamos esta jornada. 

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Viagens na Ásia Central em Demanda do Cataio: Bento de Goes e António de Andrade”, Introd. e notas de Neves Águas, Lisboa, Publ. Europa-América, 1988)