Com muita diligência e maior alegria, começámos a subri as serras; são elas as mais fragosas e altas que parece pode haver no mundo, e bem longe estou de poder declarar a V. R. a dificuldade com (que) por elas subimos; basta saber depois de andar dois dias desde pela manhã até à noite, não acabávamos de passar uma, cortando pelos mais altos picos, e neles por caminho tão estreito, que por muitas vezes não é mais largo, que quanto cabe um só pé, andando bons pedaços assi, pé ante pé, pegados com as mãos, pera não resultar, pois o mesmo é errar o pôr o pé bem dereito, que fazer-nos em pedaços pelos ares. São pela maior parte aquelas serras tão talhadas a pique, como se por arte estivessem a prumo, correndo-lhes lá no fundo, como em um abismo, o rio Ganga, que por ser mui caudaloso, e se despenhar com notável estrondo por grande penedia entre serras tão juntas, acrescenta com seu eco o pavor que a estreiteza do caminho causa a quem vem passando. Tem as descidas mais dificultosas e perigosas, pois carece homem em muitas partes de remédio de se poder pagar com as mãos como nas subidas, e assi é necessário descer em muitas partes como quem desce escada de mão, dando as costas ao caminho que vai fazendo. Duas considerações nos facilitavam muito estas dificuldades das serras: a primeira, ver que assi as passavam com muita alegria muitos gentios que iam em romaria ao seu pagode, e nós por glória de Jesu Cristo, nosso Deus, não fazíamos mais que eles; outra, que entre estes idólatras havia muito de crescida idade, já com os pés na cova e muito inferiores a nós nas forças e na idade, que nos serviam de boa confusão, e também de nos animar neste caminho.
(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Viagens na Ásia Central em Demanda do Cataio: Bento de Goes e António de Andrade”, Introd. e notas de Neves Águas, Lisboa, Publ. Europa-América, 1988)
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