Mas tornando às serras, são elas pela maior parte cheias de muito arvoredo, do meio para baixo, como grandes pinheiros de várias castas, e de estranha grandeza, uns como os nossos e outros mais frescos, que não dão fruto, mas de muito melhor madeira, tão altos, sem tortura alguma, que passem por duas e três altiras da Torre do Bom Jesu de Goa; não é encarecimento, senão realidade muito certa; em muitas partes achámos grande número de pessegueiros e pereiras carregadas de muita fruta verde, e muitas árvores de canela, ciprestes, limoeiros, roseirais grandíssimos, com rosas sem número, muitas amoras de sylva, umas pretas como as nossas, outras vermelhas como medronhos, mas todas muito boas; uma serra vi, toda de árvores de S. Tomé, sem folha, mas tão carregadas de flores, umas brancas e outras como as da Índia, e elas tocando-se umas às outras como os ramos, de sorte que parecia toda a serra um monte de flores, ou uma só flor, e foi a mais fermosa vista neste género que em toda a minha vida tive; há grande número de outras árvores como castanheiros, sem fruta, mas quebram com ramalhetes de fermosíssimas flores, de maneira que cada cacho é um fermoso e grande ramalhete da figura de um acipreste, tão talhado que não deixa a natureza lugar a se lhe acrescentar cousa alguma pera sua perfeição. As flores, como as nossas, são muitos lírios, rosas, e açucenas, e outras em grande número, tão perigrinas como fermosas, e em muitas partes vi grandes tratos de terra, cuja erva era só manjerona, tão fina como a nossa, mas a folha mais meúda; porém o que faz as serras mais aprazíveis, e menos dificultosas aos caminhantes, são as muitas fontes que delas correm, umas despenhando-se dos mais altos picos, outras brotando de vivas pedras ao longo do caminho, de água tão cristalina e fresca, que há mais que desejar. Assi chegámos à cidade de Siranagar, aonde reside o Rajá, e não tem outra, porém um grandíssimo número de aldeias como vilas pequenas. E a gente desta terra nos costumes mui diferentes da gente industana, não degolam os carneiros e cabras, que comem, mas afogam-nas, e dizem que ficando o sangue espalhado, faz a carne mais gostosa; e assi, sem esfolar as rezes, com a pele chamuscada e a carne mal assada, correndo-lhe o sangue, a comem; de ordinário andam descalços e com os pés gretados e cheios de golpes, e tão calejados que correm sem moléstia alguma por cima de pedras mui agudas e espinheiros sem se ferirem.
(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Viagens na Ásia Central em Demanda do Cataio: Bento de Goes e António de Andrade”, Introd. e notas de Neves Águas, Lisboa, Publ. Europa-América, 1988)
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