Nesta cidade nos fizeram grandes exames de quem nós éramos, de nossa pretensão; não podíamos dizer que (éramos) mercadores, que fora acertado, pois não levávamos fato; respondi, que eu era Português, e que ia ao Tibet em busca de um irmão meu, que havia anos lá estava, segundo as novas que me chegaram, entendendo ser o Rei; e revolvendo-nos o fato de vestir que levávamos, quando viram as lobas pretas perguntaram a rezão, ao que respondi que levávamos pera as vestir, se acaso aqueste meu irmão fosse morto, em sinal de dó, por ser aquela a côr que se usava nas nossas terras; então ficaram mais persuadidos que teria lá algum irmão, como dizia; depois de cinco dias nos deixaram passar, por particular mercê de Deus; e nós, com toda a brevidade possível, fomos caminhando obra de quinze dias por serras menos fragosas que as passadas; e passadas elas, chegámos a outras cheias de neve, nas quais a sombra e a frescura de fontes nos era já menos necessária, por haver já grande frio. Passámos o rio Ganga muitas vezes, não por pontes de corda bem dificultosas, como no caminho que tinhamos deixado atrás, mas por cima da neve que o cobria por grandes tratos, indo ele fazendo por baixo seu curso com grande estrondo. Não pude entender como era possível cair tanta neve, que abobadasse tão caudaloso rio, sem serem bastantes suas águas a levá-la, e derretê-la; parece-me que das serras ao pé das quais ele corre, não podendo sustentar a máquina e grande pêso da neve, cai sobre este rio como a montes, ficando com o pêso e queda mais composta e densa, cobrindo assi por cima em muitas partes como um tiro de espingarda em outras mais e em outras menos, deixando em lugares umas concavidades e aberturas medonhas que não causam pequeno pavor aos que passam por cima, não sabendo a que hora e ponto cairão aquelas abóbodas, como caem muitas vezes, servindo a muitos de sepultura. Assi fomos passando alguns dias, até que a cabo de mês e meio chegámos ao Pagode de Badrid, que está nos confins das terras do Siranagar; e este há grande concurso de gente, ainda das partes mui remotas, como de Ceilão e Bisnaga e outras que a ele vêem em romaria. Quando de Goa voltámos, vieram em nossa companhia dous moços cingalás de Ceilão, cumprida já sua romaria a este Pagode; queixaram-se que não acharam esmolas para se sustentar, e que padeciam muita falta; compadeci-me deles e mandei-lhes dar uns bazarrucos, que faziam um larim de Goa; porém, sabendo eles que não éramos gentios, não a aceitaram esmola, dizendo que só de Brâmenes, ou de Baneanes a recebiam. […]
(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Viagens na Ásia Central em Demanda do Cataio: Bento de Goes e António de Andrade”, Introd. e notas de Neves Águas, Lisboa, Publ. Europa-América, 1988)
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