– Poderoso rei e senhor, ainda que este meu atrevimento seja digno de grande castigo, pela desigualdade que Deus quis que houvesse entre vossa alteza e minha baixeza, a necessidade em que me vejo me faz não pôr diante este inconveniente de que me poderia temer, porque como eu sou já velho e tenho muitos filhos, de quatro mulheres com que fui casado, e em minha quantidade muito pobre, desejando como pai que sou, os deixar amparados, pedi por meus amigos que me ajudassem com seus empréstimos, que alguns me concederam, e fazendo eu emprego numa certa fazenda que por maus pecados não pude vender em todo o Japão, determinei de a trocar por qualquer coisa que me dessem por ela. E queixando-me eu disto a alguns meus amigos no Miacó donde venho, me certificaram que só vossa alteza me podia nisto agora ser bom, pelo que, senhor, lhe peço que havendo respeito a estas cãs e a esta velhice, e a ter eu muitos filhos e muita pobreza, me queira valer em meu desespero, porque nisto que lhe peço, a mim fará grande esmola, e aos chenchicos que agora vieram nesta nau grande mercê, porque esta minha mercadoria lhes serve a eles mais que a outrem ninguém, pelo grande aleijão em qual se vêem continuamente.

Enquanto durou esta prática, el-rei e a rainha se não podiam ter com riso, vendo que aquele mercador tão velho, com tantas cãs, tantos filhos, e tanta necessidade, era a princesa sua filha muito moça e muito formosa. El-rei, contudo, detendo o riso um pouco, lhe respondeu com muita gravidade que mandasse trazer a amostra da fazenda que trazia, e que se fosse coisa que nos servisse, ele nos rogaria que lha comprássemos; a que ela, fazendo uma grande mesura, se tornou a recolher para dentro.

Nós até então estávamos tão embaraçados com o que víamos, que não sabíamos determinar o que seria. As mulheres que estavam na casa, que seriam mais de sessenta, sem haver ali outro homem mais que nós os cinco companheiros somente, se começaram a confranger todas, e a acotovelar-se umas às outras, e a fazer entre si algum rumor com um riso baixo e calado; porém aquietando-se logo este, o mercador tornou a sair de dentro com as amostras da fazenda, as quais traziam seis moças muito ricamente vestidas, em trajos de homens mercadores, com seus terçados e adagas de ouro na cinta, e de aspectos graves e autorizados, porque todas eram filhas dos principais senhores do reino, que a princesa escolhera para a ajudarem nesta farsa que quis representar a el-rei e à rainha.

Estas seis traziam aos ombros cada uma seu envoltório de tafetá verde, e fingindo todos seis serem filhos daquele mercador, vinham passando numa dança ao seu modo, muito bem concertada, ao som de duas harpas e uma viola de arco, e de quando em quando diziam em trovas com falas muito suaves e muito para folgar de ouvir: «Alto e rico senhor da riqueza, por quem és, te lembra da nossa pobreza. Somos miseráveis em terra estrangeira, desprezados da gente por nossa orfandade, com desprezos e grandes afrontas, pelo que, senhor, te pedimos que por quem és, te lembres da nossa pobreza».

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – I” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 22, Junho de 2002 – a partir de “Peregrinação”, versão para português actual e glossário de Maria Alberta Menéres, nota introdutória de Eduardo Prado Coelho, vol. I, Lisboa, Relógio d’Água, 2001)