E assim a este modo, que na sua língua eram trovas muito bem feitas, disseram mais outras duas ou três, repetindo sempre no fim de cada uma delas, «por quem és, te lembra a nossa pobreza». Acabada a dança e a música, se puseram todos de joelhos diante de el-rei, e depois que o mercador com outra prática muito bem concertada lhe deu as graças da mercê que lhe queria fazer, de lhe fazer vender aquela fazenda, os seis desembrulharam os envoltórios que traziam, e deixaram cair na casa uma grande soma de braços de pau, como os que cá se oferecem a Santo Amaro, dizendo o mercador com muita graça e com palavras muito discretas que pois a natureza dos nossos pecados nos sujeitaria a nós outros a miséria tão suja, que necessariamente as nossas mãos haviam sempre de andar fedendo ao peixe ou à carne, ou ao mais que comíamos com elas, nos servia muito aquela mercadoria, porque enquanto nos servissem umas mãos, se lavariam as outras.

A qual coisa el-rei e a rainha festejaram com muito riso, e nós todos cinco estávamos tão corridos que entendendo-o el-rei, nos pediu muitos perdões dizendo que para que a princesa sua filha visse que tamanho bem ele queria aos portugueses, lhe dera aquele pequeno passatempo, de que nós somente como irmãos seus fôramos participantes. A que nós respondemos que Deus Nosso Senhor pagasse por nós a sua alteza aquela honra e mercê que nos fazia, que nós confessávamos como muito grande, e assim o publicaríamos por todo o mundo, enquanto vivêssemos. O que ele, e a rainha, e a princesa vestida ainda em trajos de mercador nos agradeceram com muitas palavras ao seu modo. E a princesa nos disse:

– Pois se o vosso Deus me quisesse tomar por sua criada, ainda lhe eu faria outras farsas muito melhores e de mais seus gosto que esta, mas eu confio que ele se não esqueça de mim.

A que nós todos postos de joelhos, e beijando-lhe o quimono que tinha vestido, respondemos que assim o esperávamos dele, e que fazendo-se ela cristã a havíamos de ver rainha de Portugal, de que a rainha sua mãe e ela se riram muito. E despedindo-nos por então de el-rei, nos tornámos à casa onde estávamos aposentados, e quando foi manhã nos mandou logo chamar, e se informou miudamente da vinda dos padres, da tenção do vice-rei, da carta, da nau, das mecadorias que trazia, e de outras muitas particularidades em que se gastaram mais de quatro horas, e me despediu dizendo que dali a seis dias se havia de ir para a cidade, e que lá lhe daria a carta e se veria com o padre, e responderia a tudo.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – I” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 22, Junho de 2002 – a partir de “Peregrinação”, versão para português actual e glossário de Maria Alberta Menéres, nota introdutória de Eduardo Prado Coelho, vol. I, Lisboa, Relógio d’Água, 2001)