Cap. 226 – Do que passei depois que partimos deste porto de Xeque até chegar à Índia, e daí a este reino 

Velejando nós deste porto do Xeque por nossa rota, com ventos nortes de monção tendente, chegámos a Lampacau aos quatro de Dezembro, onde achámos seis naus portuguesas, de que era capitão-mor um mercador que se chamava Francisco Martins, feitor de Francisco Barreto que então governava o Estado da Índia por sucessão de D. Pedro de Mascarenhas. E porque já a este tempo a monção da Índia era já quase gasta, não fez aqui o nosso capitão D. Francisco Mascarenhas mais detença que enquanto se proveu de mantimentos para a viagem.

Deste porto de Lampacau partimos na primeira oitava de Natal, e chegámos a Goa aos dezassete de Fevereiro, onde logo dei conta a Francisco Barreto da carta que trazia do rei do Japão, e ele me mandou que lha levasse ao outro dia, e eu lha levei com as armas, e terçados, e com as mais peças do presente que levava.

Ele depois que esteve vendo tudo muito devagar, me disse:

– Certifico-vos em toda a verdade que tanto prezo estas armas e peças que me agora trouxeste, como a própria governança da Índia, porque com elas e com esta carta de el-rei do Japão, espero agradar tanto a el-rei nosso senhor que, depois de Deus, elas me livrem do castelo de Lisboa, onde os mais dos que governamos este Estado vamos desembarcar, por nossos pecados.

E em satisfação deste trabalho e dos gastos que tinha feito da minha fazenda, me fez muitos oferecimentos que eu por então lhe não quis aceitar, mas justifiquei perante ele, por documentos e testemunhas de vista, quantas vezes por serviço de el-rei nosso senhor, eu fora cativo e minha fazenda roubada, parecendo-me que isso só bastaria para que nesta minha pátria se não negasse o que por meus serviços eu cuidei que me era devido.

Ele me mandou passar um documento de todas estas coisas, e juntou a ele as mais certidões que lhe apresentei, e me deu uma carta para sua alteza, com o que me fez tão certo sobejar-me cá a satisfação destes serviços, que confiado eu nestas esperanças e na razão tão clara que eu então cuidava que tinha por minha parte, me embarquei para este reino, tão contente e tão ufano com os papéis que trazia, que tinha para mim que aquele era o melhor cabedal que trazia de meu, porque estava persuadido que me não tardaria mais a mercê, que enaquanto a não requeresse.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – I” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 22, Junho de 2002 – a partir de “Peregrinação”, versão para português actual e glossário de Maria Alberta Menéres, nota introdutória de Eduardo Prado Coelho, vol. I, Lisboa, Relógio d’Água, 2001)