Prouve a Nosso Senhor que cheguei a salvamento à cidade de Lisboa, aos vinte e dois de Setembro do ano de 1558, governando então este reino a rainha Dona Catarina, nossa senhora que santa glória haja, a quem dei a carta que lhe trazia do governador da Índia, e lhe relatei por palavras tudo o que me pareceu que fazia a bem do meu negócio. Ela me remeteu ao oficial que então tinha a cargo tratar destes negócios, o qual com boas palavras e melhores esperanças, que eu então tinha por muito certas, pelo que ele me dizia, me teve os tristes papéis quatro anos e meio, no fim dos quais não tirei outro fruto senão os trabalhos e pesadumes que passei no requerimento, que não sei se diga que me foram mais pesados que quantos passei no decurso do tempo atrás.

E vendo eu quão pouco me fundiam tanto os trabalhos e serviços passados, como o requerimento presente, determinei de me recolher com essa miséria que trouxera comigo, adquirida por meio de muitos trabalhos e infortúnios, e que era o resto do que tinha gasto em serviço deste reino, e deixar o feito à justiça divina, o que logo pus em obra, pesando-me ainda por que o não fizera mais cedo, porque se assim o fizesse, quiça me pouparia nisso um bom pedaço de fazenda.

E nisto vieram a parar meus serviços de vinte e um anos, nos quais fui treze vezes cativo e desasseis vendido, por causa dos desventurados sucessos que atrás no decurso desta minha tão longa peregrinação, largamente deixo contados.

Mas ainda que isto seja assim, não deixo de entender que ficar eu sem a satisfação que pretendia por tantos trabalhos e por tantos serviços, procedeu mais da providência divina que o permitiu assim por meus pecados, que de descuido ou falta alguma que houvesse em quem por ordem do céu tinha a seu cargo satisfazer-me porque como eu em todos os reis deste reino (que são a fonte limpa donde emanam as satisfações, ainda que às vezes por canos mais afeiçoados que arrazoados) enxerguei sempre um zelo santo e agradecido, e um desejo larguíssimo e grandioso, não somente para galardoar a quem os serve, mas também para fazer muitas mercês ainda a quem os não serve, daqui se entende claramente que se eu e os outros tão desamparados como eu ficámos sem a satisfação dos nossos serviços, foi somente por culpa dos canos e não da fonte, ou antes, foi ordem da justiça divina, em que não pode haver erro, a qual dispõe todas as coisas como lhe melhor parece, e como a nós mais nos cumpre. Pelo que eu lhe dou muitas graças ao Rei do céu, que quis que por esta via se cumprisse em mim a sua divina vontade, e não me queixo dos reis da terra, pois eu não mereci mais, por meus grandes pecados.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – I” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 22, Junho de 2002 – a partir de “Peregrinação”, versão para português actual e glossário de Maria Alberta Menéres, nota introdutória de Eduardo Prado Coelho, vol. I, Lisboa, Relógio d’Água, 2001)