Setembro 2009


Arinos de Melo Franco, tentando, e com muita felicidade, explicar o maior interesse dispensado aos indígenas do Brasil e da América Central, em detrimento daquele manifestado pelos Índios de outras regiões, dá-nos a conhecer que eram precisamente aqueles que melhor se prestavam para ilustrar um conceito de «bom selvagem» e de vida «natural». Na verdade, ao contrário do que sucedia com os habitantes da América do Norte e do extremo sul da América, a amenidade do clima tornava possível que andassem nus; esta circunstância, embora puramente exterior, dava-lhes, no entanto, um aspecto ainda menos civilizado e mais próximo da natureza do que aos restantes indígenas americanos e, além disso, os habitantes do Perú e do México encontravam-se num grau de civilização e cultura demasiadamente elevado para poderem ser vistos como representantes da primitiva inocência.

Acresce ainda o facto de que, nos começos do século XVI, as naus europeias se dirigiam sobretudo ao Brasil, que dessa forma se ia tornando muito mais conhecido do que qualquer outra região.

Por outro lado, sendo este nome de Brasil, que o comércio do pau de tinta fez prevalecer sobre a designação de «terra de Santa Cruz», já anteriormente atribuído a uma daquelas ilhas lendárias, desconhecidas e fabulosas, que povoavam a cartografia medieval, era inevitável que esta terra recém-descoberta com ela fosse identificada no pensamento de muitos; o interesse que despertou encontra-se atestado em numerosos documentos.

Assim, logo em 1500, deparamos com a carta de Pero Vaz de Caminha, a do Piloto Anónimo e a de D. Manuel aos Reis Católicos.

Em 1501, é um italiano, Giovanni Cretico, que se ocupa dos habitantes do Brasil.

Em 1502, ou inícios de 1503, outro italiano, Américo Vespúcio, escreve uma carta a Pedro Lourenço de Médicis, carta essa que ficou vulgarmente conhecida pelo nome de Mundus Novus e cuja influência veio a ser decisiva para os conhecimentos geográficos da época. […]

Quanto ao seu conteúdo, diz-nos que nela louva Américo Vespúcio a beleza e o clima do país, assim como a forma de viver dos seus numerosos habitantes. Viviam num regime comunitário, ignorando a propriedade, a moeda e o comércio, gozavam de uma liberdade moral completa, não tinham religião, e a sua idade alcançava, em média, cento e cinquenta anos.

Por tudo isto as cartas de Vespúcio constituem, na opinião de Arinos de Mello Franco, a base da formação do mito do «bom selvagem» […]

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 10 e 11

Todos estes dados que até aqui reunimos contribuem para nos dar uma rápida visão do lugar cada vez maior que o novo continente ia ocupando nas preocupações europeias. Mas mais nos interessa agora notar que, para além de todo este progresso material e de todos os factores económicos que estiveram em jogo durante o longo período de colonização da América, houve sempre – inúmeras provas o atestam – um interesse mais directo, de cada indivíduo, de cada explorador, por tudo o que de novo ou de diferente tinham conhecimento. E é assim que, quer por cartas, quer em narrativas de viagens, se apressam a comunicar tudo o que os impressiona ou deslumbra àqueles que, igualmente sedentos de novidade, mas impossibilitados de partir, ficaram na Europa.

O botânico preocupa-se em conhecer as espécies de plantas, de árvores, de flores, como o zoólogo vibra ao saber da existência de animais até então desconhecidos da ciência. Mas é sobretudo o homem, o Índio americano, com os seus costumes, com as suas concepções religiosas e morais e mesmo com a sua vida prática, que preocupa a sociedade europeia e que esta se empenha em conhecer nas suas menores manifestações.

[…]

Os Descobrimentos foram, sabemo-lo bem, um dos factores dominantes do Renascimento. As concepções pseudo-científicas da Idade Média caíram como um baralho de cartas e com elas se foi, pouco a pouco, fragmentando e desagregando o teocentrismo que a tinha dominado e que foi progressivamente cedendo o lugar a novos valores. […]

Sem o homem do Renascimento, o Índio da América apenas teria existido na literatura como simples curiosidade ou diversão do espírito. E, ao mesmo tempo que aquele o enriqueceu com novas perspectivas, este forneceu-lhe matéria e temas preciosos e inesgotáveis.

Assim se compreende a avidez com que toda e qualquer informação sobre esses novos povos era acolhida. As cartas, as longas narrativas ou as simples notações de viagens, eram recebidas com entusiasmo, lidas, traduzidas, comentadas.

Desde que Colombo tornou conhecida a sua descoberta, não se descansou mais na Velha Europa. As cartas tornaram-se objecto de todas as atenções e constituíram o germe que iria dar origem a algumas das mais completas e das mais belas narrativas de viagem.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 8 a 10

Quais as circunstâncias históricas que tornaram possível o aparecimento do Índio como tema literário?

Quais os meios por que as coisas do Brasil se foram progressivamente tornando conhecidas na Europa?

Qual o resultado do contacto deste conhecimento com as ideias que já existiam na Europa sobre os selvagens?

São estas as perguntas a que, antes de mais, nos propomos responder.

Quando, em 1492, Cristóvão Colombo aportou, na América Central, em S. Salvador, não lhe era fácil dar-se conta de que um Novo Mundo se tinha aberto aos Europeus.

Levado pela ideia de alcançar as Índias pelo Oeste, facilmente se convenceu de que tinha chegado ao seu destino. E quando, em 1500, Pedro Álvares Cabral desembarcava num território que viria em seguida a formar a província portuguesa do Brasil, continuava-se ainda na mesma ilusão.

É difícil agora, a distância, darmo-nos bem conta da emoção que se deve ter verificado quando, em 1507, o florentino Américo Vespúcio deu conta de que não era a Índia o território descoberto, mas sim um território completamente desconhecido, e da curiosidade intensa, quase da impaciência febril, que da Europa se ia apoderando, de conhecer exactamente as possibilidades que se encontravam nas terras recém-descobertas.

Assim se compreende que, desde então, e durante um largo período de tempo, os olhos da Europa tenham estado fixados no Novo Mundo.

Quer procurando expandir para além-mar o património recebido e a religião da terra-mãe, quer cedendo a um desejo imperioso de novidade e libertação, em breve se estabeleceu entre a velha Europa e o Novo Mundo uma cadeia de circulação e relações que não viria mais a ser interrompida.

A Espanha, desde 1519, até à segunda metade do século XVI, ocupa o México (1519-1522), o Perú (1532-1535(, a Venezuela (1520-1540), o Iucatão (1527-1547), a Colômbia (1538) e, finalmente, a Argentina e o Paraguai. Portugal continuava  ocupado na colonização do Brasil e, fascinados pelas novas descobertas, logo, após Espanhóis e Portugueses, se lançaram Franceses, Ingleses e Holandeses na rota do Novo Mundo.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 7, 8

Memórias de África e do Oriente

De facto, continuavam a viver-se momentos complicados na política interna portuguesa, sendo de fundamental importância o abandono das fortalezas que Portugal detinha em Marrocos, desolação sustentada na ideia de que D. Catarina se deixava influenciar pela pouca importância dada por Castela a essa vertente dos interesses portugueses.Vivia-se igualmente a consequência do gorado sonho da Índia, de que apenas restavam os “fumos”. É nesse contexto que deve ser entendida a necessidade de clarificar as políticas e recuperar para o reino as zonas que ainda era possível dominar. Estava nesse caso o Brasil, nomeadamente as capitanias do sul e, obviamente, a zona da Guanabara. Não poderia, pois, haver mais hesitações. Era preciso enviar reforços que, assegurando a presença portuguesa, pudessem, em simultâneo, desbravar, povoar, criar núcleos urbanos, de que o Rio de Janeiro era já a mais estratégica promessa.

Por isso, o Cardeal D. Henrique faz partir de Lisboa, em Maio de 1566, uma frota de socorro sob o comando d Cristóvão de Barros, que chegou à Baía em 24 de Agosto. Nela “o cardeal D. Henrique enviava instruções para Mem deSá […] ordenando-lhe que fosse em pessoa ao Rio de Janeiro, no comando da frota […]. Os franceses tinham recebido forte auxílio militar para erguer fortalezas na costa do Cabo Frio, mantendo os nativos em estado de constante guerra contra os habitantes de S. Sebastião. A presença do Governador, no teatro da luta, tornava-se urgente […]. Cumprindo as ordens recebidas, Mem de Sá reforçou a esquadra e seguiu para o Rio de Janeiro, onde ancorou em 18 de Janeiro de 1567.

“O sacrifício de Estácio de Sá e dos seus homens durara vinte e dois longos meses, vividos «com muita guerra e trabalhos». Mas, como reconheceu o próprio governador, supriu tudo com enorme coragem, conseguindo manter-se, apesar da falta de mantimentos e do escasso auxílio que tinham recebido da Baía de Todos os Santos. O desgaste de nervos, a que os obrigara uma luta quase diária de assaltos e emboscadas,não enfraquecera, porém, o ânimo dos moradores”. A cidade do Rio de Janeiro era já uma realidade no espaço, que nada poderia destruir. Em consonância com a política do reino, que decidira que, abertamente, se fizesse guerra à ocupação francesa, não temendo já enfrentar, se tal fosse necessário, o desafio espanhol, o domínio das terras do sul tornava-se cada vez mais realidade.

A cidade do Rio de Janeiro foi crescendo, ganhando os morros vizinhos e alargando a sua grandeza. Estácio de Sá morria, na sequência de graves ferimentos, em Fevereiro de 1567. Tinham decorrido quase dois anos sobre a fundação e iniciava-se finalmente a pacificação, pois “um testemunho coevo refere que o Governador entrara em paz com o gentio e que «os franceses estavam botados fora do Rio de Janeiro» […]”.

(Manuela Mendonça, “A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?”, in “Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas”, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 300 – 301)

Seguiu-se um período de alguma agitação e, enquanto estava no porto de S. Vicente, nos fins desse ano de 1564, Estácio de Sá recebeu um pedido dos vereadores de S. Paulo, solicitando-lhe que desistisse do projecto do Rio de Janeiro e conduzisse as suas forças para salvar São Paulo, também muito ameaçada pelos índios da região. Garantiam agora que de nada serviria fundar uma nova povoação na Guanabara, se a terra de Piratiniga estava em riscos de se perder. Mas esta era a perspectiva dos moradores de São Paulo, que viam o problema somente em função da sua capitania. Contudo, o plano de Estácio era o mais eficiente, porque considerava que a criação de uma cidade no Rio de Janeiro iria contribuir para a segurança de São Paulo, Importante era que se pusesse um rápido termo aos focos de resistência dos Tamoios, pois eles partiam de Guanabara para a ameaça que faziam a Brasil. Portanto, se ali fossem vencidos, S. Paulo mais facilmente obteria a paz. Era a unidade do Brasil português que estava em causa e a fundação do Rio de Janeiro iria contribuir para essa realidade.

E assim aconteceu. De Santos, a frota portuguesa dirigiu-se, em Janeiro de 1565, para a Guanabara. No dia 26 de Fevereiro entraram na baía – “verdadeira Babilónia de águas e de ilhas” na frase de Varnhagem – e foram desembarcar numa pequena península onde mais tarde se construiria o forte de S. João, à sombra do monte depois conhecido por Pão de Açúcar. Foi ali que Estácio de Sá fundou o novo povoado, que não era mais que uma modesta cerca. A 1 de Março, “começaram a roçar em terra”, cortando madeira e desbastando o mato, erguendo, a partir de então, o mais antigo núcleo da povoação. A essa pequena cerca deu Estácio de Sá o nome de S. Sebastião, em homenagem ao jovem rei de Portugal, sob cujo signo se erguia a nova cidade. Viveram-se dias terrivelmente difíceis para os primeiros moradores, pois os nativos, ajudados e até instigados por alguns franceses que se haviam refugiado no interior, atacavam o arraial tentando, a todo o custo, impedir a construção. Por isso mesmo se pode dizer que o primeiro mês de vida da cidade do Rio de Janeiro foi de extremo sacrifício para os defensores, que eram, na sua grande maioria, também povoadores. Aos ataques inimigos aliava-se a chuva abundante que não deixava de tombar e até as provisões se esgotaram, dando origem a grandes dificuldades e até mesmo à fome. A figura de Estácio de Sá foi determinante em todo o processo, numa actividade que levou o Padre Anchieta a escrever que o capitão: “nunca descansava nem de noite nem de dia”.

(Manuela Mendonça, “A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?”, in “Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas”, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 297 – 299)

Por outro lado, na capitania de S. Vicente erguera-se, a partir de 1554, um aglomerado urbano com o nome de São Paulo. Era importante a criação de uma povoação vizinho que garantisse a pacificação dos nativos e protegesse, em caso de perigo, a terra de Piratininga. Por isso, também os habitantes de São Paulo insistiam na fundação de uma cidade no Rio de Janeiro. E os jesuítas defendiam também as vantagens dessa fundação que o Padre Manuel da Nóbrega preconizava, em 1560, como “a milhor cousa do Brasil”. De facto, importava encontrar uma eficaz maneira de impedir os franceses de voltarem à Guanabara. E tal conseguir-se-ia com soldados, mas também, e sobretudo, com moradores que assegurassem uma população estável, que se integrasse na terra e a sentisse como sua.

Todas estas circunstâncias levaram a Coroa a apoiar finalmente a fundação da cidade, decidindo a criação de um núcleo português na baía de Guanabara. Assim se iniciava uma obra de pacificação, tanto militar como religiosa, quanto aos índios; em simultâneo abria-se uma guerra aberta, contra os corsários, nomeadamente contra os franceses. Com efeito, a existência de uma povoação habitada por súbditos do rei de Portugal dificultaria agora o que antes se facilitara: a presença franca, caso a Coroa retomasse a ideia de ali fixar de novo o seu poder. E se tal acontecesse, certamente D. Catarina contava com a ajuda de Espanha. Deste modo terminava o período em que a região da Guanabara fora “terra de ninguém”. O sítio do Rio de Janeiro ia servir de base à fundação de uma bela e promissora cidade. Para tanto, no ano seguinte, de 1561, o governador mandou ao reino um sobrinho, Estácio de Sá, com o fim de obter o envio de uma significativa ajuda para garantir a fundação. Na sequência dessa missão, uma frota partiria de Lisboa em 15 de Fevereiro de 1563, aportando, a 1 de Maio seguinte, à Baía de Todos os Santos. Daí seguiu, aumentada em efectivos, na direcção de Guanabara, com o objectivo de “fazer povoação”. No impedimento do Governador, comandava-a Estácio de Sá, seguindo nela como ouvidor-geral Brás Fragoso. No dia 6 de Fevereiro de 1564 entraram na baía do Rio de Janeiro, mas foram acolhidos de maneira hostil pelos índios Tamoios, que atacaram os portugueses com perto de cem canoas. Vendo que era impossível iniciar, de momento, a construção da povoação, Estácio de Sá mandou pedir reforços a S. Vicente e, perante o aumento de dificuldades, resolveu seguir para o sul em 29 de Março para obter novos meios de luta. Falhara a primeira tentativa para a fundação de uma vila portuguesa no Rio de Janeiro.

(Manuela Mendonça, “A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?”, in “Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas”, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 296, 297)

A substituição do governador Tomé de Sousa por D. Duarte da Costa que, talvez orientado pelo governo de Lisboa, parecia desinteressado das capitanias do sul, não foi de molde a valorizar a presença portuguesa na Guanabara. Tal atitude haveria de conduzir ao reforço da presença franca, que teria o seu ponto alto nos finais de 1555. Então, um grupo de 600 franceses, chefiados por um Nicolau de Villegaignon – curiosa figura de jurista, militar e aventureiro – fixou-se na Guanabara, ai criando o núcleo de uma França Antártica que, durante cinco anos, constituiu uma grave ameaça para o futuro do Brasil português. Mas não impediu a continuação do projecto de criação da cidade portuguesa que então, com maior veemência, se impunha. Esta tentativa dos franceses ultrapassava já largamente a situação anterior, transformando-a numa ameaça de força capaz de expulsar os próprios portugueses do Rio de Janeiro! Dominando a pequena ilha de Serigipe – depois chamada de Vilaganhão – os franceses transformaram-na em reduto muralhado, de modo a assegurarem, naturalmente pela força, a respectiva presença. Villegaignon sonhou fundar a partir dali os alicerces de uma futura cidade, a que chamaria Henryville, em homenagem ao seu rei. Disputando o Sul do Brasil e escolhendo a sua melhor zona estratégica, o comandante levantaria uma cidade à semelhança do que fizera, por exemplo, Constantino, imperador de Roma, em Contantinopla. Seria a resposta ao favor régio que esta expedição tivera, uma vez que fora apoiada pelos reis Henrique II e Catarina de Médicis, além de contar com o auxílio do almirante de Coligny, chefe dos huguenotes franceses. Já não se tratava, pois, de um um acto de pirataria, mas de uma violação dos direitos portugueses pela Coroa de França, concretizando uma ameaça que o rei de Portugal de há muito arriscava. Era a afirmação do poder francês que, como grave ameaça à coroa portuguesa, só desapareceu em 1560.

(Manuela Mendonça, “A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?”, in “Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas”, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 293 – 294)

Enquanto no reino se iam gizando os planos políticos, os homens presentes no Brasil iam percebendo a importância crescente do avanço para sul, com o estabelecimento de pontos de apoio ao longo da costa. E nessa perspectiva começou a ser apontado o local onde viria a ser construído o Rio de Janeiro, pela sua localização estratégica. Tal aconteceu com a já aludida expedição de Martim Afonso, que permaneceu de 30 de Março a 1 de Agosto de 1531 na Guanabara. O irmão deste capitão, Pero Lopes de Sousa, traçou, no roteiro por si elaborado, a primeira panorâmica desta zona, em língua portuguesa. Em texto sucinto, mas valioso, descreve a beleza da região: “A gente deste rio he como a da baia de todolos santos, senam quanto he mais gentil gente. Toda a terra deste Rio he de montanhas e serras mui altas, as melhores aguas ha neste Rio […]”. Estes dois irmãos estabeleceram-se na zona, sendo concedida a capitania de S. Vicente a Martim Afonso de Sousa, e a de Santo Amaro a Pêro Lopes de Sousa. Com a sua presença, dois padrões portugueses passariam a demarcar a respectiva soberania na zona que englobava já o local onde seria construída a futura cidade do Rio de Janeiro. E tal escolha não era indiferente ao nauta português, pois tinha ordem régia para “na repartição que disso se ouver de fazer escolhais a melhor parte […] nos melhores limites dessa costa […]”. Se escolheu esta zona foi porque acreditou no seu potencial, numa clara demonstração do crescente interesse dos portugueses pelas terras meridionais, mas também percebendo a importância estratégica da Guanabara.

Mas o grande centro de interesse oficial na política do Brasil continuava a ser as capitanias do Norte, sobretudo Pernambuco e a Baía. Por isso, era nessa porta de entrada do território que a Coroa fazia concentrar a parte mais forte da defesa, quase desguarnecendo a restante costa. Tal permitia que a acção dos corsários franceses continuasse a alargar-se até à zona do Cabo Frio, onde iam roubar madeira e amotinar os indígenas contra a presença dos mercadores e nautas portugueses. Nos anos de 1547 e 1548 essa ameaça tornara-se tão grave que Luís de Góis, morador em Santos, escreveu a D. João III alertando-o: “se com tempo e brevidade Vossa Alteza não socorre a estas capitanias e costa do Brasil, ainda que nós percamos as vidas e fazendas, Vossa Alteza perderá a terra”. Este e outros alertas levaram à criação, em 1549, do Governo Geral e à medida que se caminhava para uma melhor organização do território, mais clara se tornava a importância estratégica da Guanabara. Por isso iam aumentando as propostas para que o monarca ali mandasse fundar uma povoação, única maneira de evitar a perda da região, pois continuava a ser uma escala de corsários, sobretudo franceses.

(Manuela Mendonça, “A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?”, in “Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas”, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 289, 290)

Sabemos que, após a chegada das naus de Pedro Álvares Cabral à terra de Santa Cruz, se legitimava para Portugal um ponto de escala no caminho para a rota do Cabo. Na sequência, foram-se estabelecendo os portugueses nos pontos mais favoráveis aos objectivos do momento. Mas o Brasil, inserido como estava num continente bem mais vasto, não podia ser apenas ponto de interesse ou apoio para o povo luso. Já referimos a presença francesa, mas importa lembrar que também os espanhóis, que tomavam a direcção do Rio da Prata, navegavam por estas paragens, nomeadamente pela região da Guanabara. Por outro lado, não é novidade para ninguém que o corso era, à época, uma actividade rentável para os que o exerciam e para os respectivos monarcas, que o legitimavam e depois lhe partilhavam os proventos. Por isso, desde o primeiro quartel do século XVI, corsários, sobretudo franceses, navegavam por estes mares, chegando mesmo a estabelecer pontos de apoio em zonas favoráveis da costa. Esta situação acentua-se sobretudo a partir de 1530 para a zona a sul do Cabo Frio. Como resposta, Portugal passaria a enviar algumas expedições que visavam destruir esse terror dos mares e ameaça da costa. Assim se deve entender, por exemplo, a que foi comandada por Martim Afonso de Sousa, que partiu de Lisboa a 3 de Dezembro de 1530, e que chegou já em 1531. Levava como missão específica pôr um termo à presença dos corsários franceses que pretendiam rivalizar com o comércio português e atrair a amizade dos indígenas. Começaria D. João III a encarar de frente a defesa do Brasil? A resposta parece ser positiva, atendendo à ordem régia para a colocação de padrões portugueses como marcas de posse da terra. Tal decisão pode compreender-se ainda melhor, se pensarmos que ela ocorre na sequência do problema levantado por Espanha sobre a posse das Molucas e que se decidira em 1529. A questão colocada prendia-se com a reivindicação espanhola de ter chegado às ilhas antes dos portugueses. Por mais que D. João III demonstrasse que não era verdade, apresentando testemunhos, nada pôde provar, acabando por aceitar “comprar” a respectiva posse aos espanhóis, que lhe exigiram a módica quantia de 350.000 ducados de ouro. Não se torna, pois, difícil perceber que o rei de Portugal se começasse a preocupar com a marcação das terras, provando assim a sua prioridade na ocupação. Ora, em acção concertada com a colocação dos padrões e para um melhor conhecimento e aproveitamento da zona, D. João III organizava também as capitanias, que entregava a gente da sua confiança.

(Manuela Mendonça, “A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?”, in “Raízes Medievais do Brasil Moderno – Actas”, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 2008, pp. 284, 285)

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