Auto da Índia – Gil Vicente


Para saber mais sobre este texto teatral de Gil Vicente, pode consultar-se esta página.

É também possível ver a representação do “Auto da Índia” via Internet, aqui.

“Onde não há marido
cuidai que tudo é tristura,
não há prazer nem folgura,
sabei que é viver perdido.
Alembrava-vos eu lá?
MARIDO: E como!

AMA: Agora, aramá:
lá há índias mui fermosas,
lá faríeis vós das vossas
e a triste de mi cá,
encerrada nesta casa,
sem consentir que vezinha
entrasse por üa brasa,
por honestidade minha.

MARIDO: Lá vos digo que há fadigas,
tantas mortes, tantas brigas
e perigos descompassados,
que assi vimos destroçados
pelados coma formigas.

AMA: Porém vindes vós mui rico…

MARIDO: Se não fora o capitão,
eu trouxera, a meu quinhão,
um milhão vos certifico.
Calai-vos que vós vereis
quão louçã haveis de sair.

AMA: Agora me quero eu rir
disso que me vós dizeis.
Pois que vós vivo viestes,
que quero eu de mais riqueza?
Louvado seja a grandeza
de vós, Senhor que mo trouxestes.
A nau vem bem carregada?

MARIDO: Vem tão doce embandeirada.

AMA: Vamo-la, rogo-vo-lo, ver.

MARIDO: Far-vos-ei nisso prazer?

AMA: Si que estou muito enfadada.

Vão-se a ver a nau e fenece esta farsa.”

(Texto em formato electrónico proveniente de Projecto Vercial – Literatura Portuguesa, via http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/1813)

“E com a memória da cruz
fiz-lhe dizer üa missa,
e prometi-vos em camisa
a Santa Maria da Luz.
E logo à quinta-feira
fui ao Spírito Santo
com outra missa também.
Chorei tanto que ninguém
nunca cuidou ver tal pranto.
Correstes aquela tromenta?
Andar… 

MARIDO: Durou três dias.

AMA: As minhas três romarias
com outras mais de quarenta.

MARIDO: Fomos na volta do mar
quasi a quartelar:
a nossa Garça voava
que o mar se espedaçava.
Fomos ao rio de Meca,
pelejámos e roubámos
e mui risco passámos:
a vela, árvore seca.

AMA: E eu cá esmorecer,
fazendo mil devações,
mil choros, mil orações.

MARIDO: Assi havia de ser.

AMA: Juro-vos que de saudade
tanto de pão não comia
a triste de mi cada dia
doente, era üa piedade.
Já carne nunca a comi,
esta camisa que trago
em vossa dita a vesti
porque vinha bom mandado.”

(Texto em formato electrónico proveniente de Projecto Vercial – Literatura Portuguesa, via http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/1813)

AMA Não sei pera que é viver.
MARIDO: Oulá.

AMA: Ali má hora este é.
Quem é?
MARIDO: Homem de pé.

AMA: Gracioso se quer fazer.
Subi, subi pera cima.

MOÇA: É noss’amo, como rima!

AMA: Teu amo? Jesu, Jesu,
Alvíssaras pedirás tu.

MARIDO: Abraçai-me minha prima.

AMA: Jesu, quão negro e tostado!
Não vos quero, não vos quero.

MARIDO: E eu a vós a si, porque espero
serdes mulher de recado.

AMA: Moça, tu que estás olhando,
vai muito asinha saltando,
faze fogo, vai por vinho
e a metade dum cabritinho,
enquanto estamos falando.
Ora como vos foi lá?

MARIDO: Muita fortuna passei.

AMA: E eu, oh quanto chorei,
quando a armada foi de cá.
E quando vi desferir
que começastes de partir,
Jesu, eu fiquei finada,
três dias não comi nada,
a alma se me queria sair.

MARIDO: E nós cem léguas daqui
saltou tanto sudueste,
sudueste e oés-sudueste
que nunca tal tromenta vi.

AMA: Foi isso à quarta-feira,
aquela logo primeira?

MARIDO: Si, e começou n’alvorada.

AMA: E eu fui-me de madrugada
a nossa Senhora d’Oliveira.”

(Texto em formato electrónico proveniente de Projecto Vercial – Literatura Portuguesa, via http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/1813)

“MOÇA Ai, senhora! Venho morta!
Noss’ amo é hoje aqui.
AMA Má nova venha por ti
perra, excomungada, torta.
MOÇA A Garça, em que ele ia,
vem com mui grande alegria;
per Restelo entra agora.
Por vida minha, senhora,
que não falo zombaria.
E vi pessoa que o viu
gordo, que é pera espantar.

AMA Pois, casa, se t’ eu caiar,
mate-me quem me partiu!
Quebra-me aquelas tigelas
e três ou quatro panelas,
que não ache em que comer.
Que chegada e que prazer!
Fecha-me aquelas janelas,
deita essa carne a esses gatos;
desfaze toda essa cama.

MOÇA De mercês está minha ama;
desfeitos estão os tratos.

AMA Porque não matas o fogo?

MOÇA Raivar, qu’ este é outro jogo.

AMA Perra, cadela, tinhosa,
que rosmeias, aleivosa?

MOÇA Digo que o matarei logo.”

(Texto em formato electrónico proveniente de Projecto Vercial – Literatura Portuguesa, via http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/1813)

AMA I-vos embora, senhor
que isto quer amanhecer.
Tudo está a vosso prazer,
com muito dobrado amor.
Oh, que mesuras tamanhas!
MOÇA Quantas artes, quantas manhas,
que sabe fazer minha ama!
Um na rua, outro na cama!
AMA Que falas? Que t’ arreganhas?

MOÇA Ando dizendo entre mi
que agora vai em dous anos
que eu fui lavar os panos
além do chão d’ Alcami;
e logo partiu a armada,
domingo de madrugada.
Não pode muito tardar
nova, se há-de tornar
noss’ amo pera a pousada.

AMA Asinha.

MOÇA Três anos há
que partiu Tristão da Cunha.

AMA Cant’ eu ano e meio punha.

MOÇA Mas três e mais haverá.

AMA Vai tu comprar de comer.
Tens muito pera fazer,
não tardes.

MOÇA Não, senhora;
eu virei logo nessora,
se m’ eu lá não detiver.

AMA Mas que graça, que seria,
se este negro meu marido,
tornasse a Lisboa vivo
pera a minha companhia!
Mas isto não pode ser,
que ele havia de morrer
somente de ver o mar.
Quero fiar e cantar,
segura de o nunca ver.”

(Texto em formato electrónico proveniente de Projecto Vercial – Literatura Portuguesa, via http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/1813)

AMA Meu irmão cuidei que se ia.

CASTELHANO Ah, señora, y reísvos vós!
Ábrame, cuerpo de Dios!

AMA Tornareis cá outro dia.

CASTELHANO Assossiega, coraçón,
adormiéntate, león,
no eches la casa en tierra
ni hagas tan cruda guerra,
que mueras como Sansón.
Esta burla es de verdad,
por los ossos de Medea,
si no que arrastrado sea
mañana por la ciudad;
por la sangre soverana
se la batalla troyana,
y juro a la casa sancta…

AMA Pera qu’ é essa jura tanta?

CASTELHANO Y aún vos estáis ufana?
Quiero destruir el mundo,
quemar la casa, es la verdad,
despucs quemar la ciudad;
señora, en esto me fundo.
Después, si Dios me dixere,
cuando allá con él me viere
que sola por una mujer…
Bien sabré que responder,
cuando a esso veniere.

AMA Isso são rebolarias!

CASTELHANO Séame Dios testigo,
que vos veréis lo que digo,
antes que passen tres días.

AMA Má viagem faças tu
caminho de Calecu,
praza à Virgem consagrada.

LEMOS Que é isso?
Não é nada.

LEMOS Assi viva Belzebu.”

(Texto em formato electrónico proveniente de Projecto Vercial – Literatura Portuguesa, via http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/1813)

“Vai e vem muito improviso
«Quem vos anojou, meu bem,
«bem anojado me tem.»
AMA Vós cantais em vosso siso?

LEMOS Deixai-me cantar, senhora.

AMA A vizinhança que dirá,
se meu marido aqui não’ stá,
e vos ouvirem cantar?
Que rezão lhe posso eu dar,
que não seja muito má?
Reniego de Marenilla:
esto es burla, o es burleta?
Queríeis que me haga trompeta,
qué me oiga toda la villa?

AMA Entrai vós, ali, senhor,
que ouço o corregedor;
temo tanto esta devassa!
Entrai vós ness’ outra casa
que sinto grande rumor.

Chega à janela.

Falai vós passo, micer.

CASTELHANO Pesar ora de San Palo,
esto es burla o es diablo?

AMA E eu posso vos mais fazer?

CASTELHANO Y aún en esso está ahora
la vida de Juan de Çamora?
Son noches de Navidá,
quiere amanecer ya,
que no tardará media hora.”

(Texto em formato electrónico proveniente de Projecto Vercial – Literatura Portuguesa, via http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/1813)

CASTELHANO Ábrame, vuessa merced,
que estoy aquí a la verguença!
Esto úsasse en Siguença:
pues prometéis, mantened.
AMA Calai-vos, muitieramá

até que meu irmão se vá!
Dissimulai por i, entanto.
Ora vistes o quebranto?
Andar, muitieramá!
LEMOS Quem é aquele que falava?

AMA O Castelhano vinagreiro.

LEMOS Que quer?

AMA Vem polo dinheiro

do vinagre que me dava.
Vós queríeis cá cear
e eu não tenho que vos dar.
LEMOS Vá esta moça à Ribeira

e traga-a cá toda inteira,
que toda s’ há-de gastar
MOÇA Azevias trazerei?

LEMOS Dá ao demo as azevias:

não compres, já m’ enfastias.
MOÇA O que quiserdes comprarei.

LEMOS Traze uma quarta de cerejas

e um ceitil de bribigões.
MOÇA Cabrito?

LEMOS Tem mil varejas.

MOÇA E ostras trazerei delas?

LEMOS Se valerem caras, não:

antes traze mais um pão
e o vinho das Estrelas.
MOÇA Quanto trazerei de vinho?

LEMOS Três pichéis deste caminho.

MOÇA Dais-me um cinquinho, nô mais?

LEMOS Toma aí mais dous reais.”

(Texto em formato electrónico proveniente de Projecto Vercial – Literatura Portuguesa, via http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/1813)

LEMOS Ou da casa!

AMA Quem é lá?

LEMOS Subirei?
Suba quem é.

LEMOS Vosso cativo, Senhora.
Jesu! Tamanha mesura!

AMA Sou rainha porventura?
Mas sois minha emperadora.

LEMOS Que foi do vosso passear,
com luar e sem luar,

AMA toda a noite nesta rua?

LEMOS Achei-vos sempre tão crua,
que vos não pude aturar.

Mas agora como estais?
Foi-se à Índia meu marido,
e depois homem nascido
não veio onde vós cuidais;
e por vida de Constança,
que se não fosse a lembrança…

MOÇA Dizei já essa mentira.
Que eu vos não consentira
entrar em tanta privança.

LEMOS Pois agora estais singela,
que lei me dais vós, Senhora?

AMA Digo que venhais embora.

LEMOS Quem tira àquela janela?

AMA Meninos que andam brincando,
e tiram de quando em quando.

LEMOS Que dizeis, Senhora minha?

AMA Metei-vos nessa cozinha,
que me estão ali chamando.”

(Texto em formato electrónico proveniente de Projecto Vercial – Literatura Portuguesa, via http://www.bibvirt.futuro.usp.br/content/view/full/1813)

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