Crónica da Guiné – Gomes Eanes Zurara


Crónica Guiné

CAPÍTULO XXV 

Como o autor aqui razoa um pouco sobre a piedade que ha daquelas gentes, e como foi feita a partilha

Ó tu, celestial Padre, que com tua poderosa mão, sem movimento de tua divinal essencia, governas toda a in finda companhia da tua santa cidade, e que trazes apertados todolos eixos dos orbes superiores, distinguidos em nove esferas, movendo os tempos das idades breves e longas, como te praz!

Eu te rogo que as minhas lagrimas nem sejam dano da minha consciencia, que nem por sua lei daquestes, mas a sua humanidade constrange a minha que chore c piedosamente o seu padecimento. E se as brutas animalias, com seu bestial sentir, por um natural instinto conhecem os danos de suas semelhantes, que queres que faça esta minha humanal natureza, vendo assim ante os meus olhos aquesta miseravel companha, lembrando-me de que são da geração dos filhos de Adão!

No outro dia, que eram VIII dias do mês de agosto, muito cedo pela manhã por razão da calma, começaram os mareantes de correger seus bateis e tirar aqueles cativos, para os levarem segundo lhes fora mandado; os quaes, postos juntamente naquele campo, era uma maravilhosa cousa de ver, que entre eles havia alguns de razoada brancura, fremosos e apostos; outros menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros tão negros como etiopes, tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos, que quasi parecia, aos homens que os esguardavam, que viam as imagens do hemisfério mais baixo.

Mas qual seria o coração, por duro que ser podesse, ti que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela companha? Que uns tinham as caras baixas e os rostros lavados com lagrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos ceus, firmando os olhos em eles, bradando altamente, como se pedissem acorro ao Padre da natureza; outros feriam seu rostro com suas palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quaes, posto que as palavras da linguagem dos nossos não podesse ser entendida, bem correspondia ao grau de sua tristeza.

Mas para seu dó ser mais acrecentado, sobrevieram aqueles que tinham cargo de partilha e começaram de os apartarem uns dos outros, a fim de poerem seus quinhões em igualeza; onde convinha de necessidade de se apartarem os filhos dos padres, e as mulheres dos maridos e os dos irmãos dos outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde o a sorte levava!

Ó poderosa fortuna, que andas e desandas com tuas rodas, compassando as cousas do mundo como te praz! E sequer põe ante os olhos daquesta gente miserável algum conhecimento das cousas postumeiras, por que possam receber alguma consolação em meio de sua grande tristeza! E vos outros, que vos trabalhaes desta partilha, esguardae com piedade sobre tanta miseria, e vede como se apertam uns com os outros, que apenas os podeis desligar!

Quem poderia acabar aquela partição sem mui grande trabalho? Que tanto que os tinham postos em uma parte, os filhos, que viam os padres na outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as madres apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados! E assim trabalhosamente os acabaram de partir, porque alem do trabalho que tinham com os cativos, o campo era todo cheio de gente, assim do lugar como das aldeias e comarcas de arredor, os quaes leixavam em aquele dia folgar suas mãos, em que estava a força do seu ganho, somente por ver aquela novidade.

E com estas cousas que viam, uns chorando, outros departindo, faziam tamanho alvoroço, que poinham em turvação os governadores daquela partilha.

O Infante era ali em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas mercês, como homem que de sua parte queria fazer pequeno tesouro, que de RVI 3 almas suas aconteceram no seu quinto, mui breve fez delas sua partilha, que toda a sua principal riqueza estava em sua vontade, considerando com grande prazer na salvação daquelas almas, que antes eram perdidas, E certamente que seu pensamento não era vão, que, como ja dissemos, tanto que estes haviam conhecimento da linguagem, com pequeno movimento se tornavam Cristãos; e eu que esta história ajuntei em este volume, vi na vila de Lagos moços e moças, filhos e netos daquestes, nados em esta terra, tão bons e tão verdadeiros Cristãos como se descenderam de começo da lei de Cristo, por geração, daqueles que primeiro foram bautizados.

“Crónica do Descobrimento e Conquista de Guiné”, Gomes Eanes de Zurara

(via “Projecto Vercial”)

(ver texto integral da “Crónica da Guiné” – Biblioteca Nacional Digital)

CAPITULO XXIV

Como as caravelas chegaram a Lagos, e das razões que Lançarote disse ao Infante

Chegaram as caravelas a Lagos, donde antes partiram, havendo nobre tempo de viagem, que lhe não foi a fortuna menos graciosa na bonança do tempo que lhe antes fora no filhamento da presa; onde as novas chegaram ao Infante, que antes poucas horas se acertara chegar ali, doutras partes donde havia dias que andava.

E como vedes que as gentes são desejosas de saber, uns cometeram de se chegar à ribeira, outros se metiam nos bateis, que achavam amarrados ao longo da praia, e iam receber seus parentes e amigos, de guisa que em breve tempo foi sabido seu bom aqueecimento, com o qual geralmente todos eram alegres. E por aquele dia abastou a esses principaes de beijar a mão ao Infante seu senhor, contando-lhe em breve a soma de seus feitos; e d’aí repousaram, como homens que chegavam a sua terra e a suas casas, onde já sabeis qual seria sua folgança entre suas mulheres e filhos.

E no outro dia Lançarote, como homem que do feito tinha principal cargo, disse ao Infante:

Senhor! Bem sabe a vossa mercê como haveis de haver o quinto destes Mouros e de tudo que ganhamos em aquela terra, onde por serviço de Deus e vosso nos mandastes. E agora estes Mouros, pelo grande tempo que andamos no mar, assim pelo nojo que deveis considerar que terão em seus coraçoes, vendo-se fora da terra de sua natureza e postos em cativeiro, sem havendo algum conhecimento de qual será sua fim; d’aí a usança que não hão de andar em navios; por tudo isto veem assaz mal corregidos e doentes; pelo qual me parece que será bem que de manhã os mandeis tirar das caravelas, e levar àquele campo que está alem da porta da vila, e farão deles cinco partes, segundo o costume, e seja vossa mercê chegardes aí e escolher uma das partes, qual mais vos prouver?

O Infante disse que lhe prazia; e no outro dia muito cedo mandou Lançarote, aos mestres das caravelas, que os tirassem fora e que os levassem àquele campo, onde fizessem suas repartições, segundo antes dissera; pero primeiramente que se em aquilo outra cousa fizesse, levaram em oferta o melhor daqueles Mouros à igreja daquele lugar, e outro pequeno, que depois foi frade de S. Francisco, enviaram a S. Vicente do Cabo, onde sempre viveu como catolico Cristão, sem havendo conhecimento nem sentimento doutra lei senão daquela santa e verdadeira em que todolos Cristãos esperamos nossa salvação. E foram os Mouros desta presa.

(via “Projecto Vercial”)

CAPÍTULO VII

No qual se mostram cinco razões porque o senhor infante foi movido de mandar buscar as terras de Guiné

Então imaginamos que sabemos alguma coisa quando conhecemos o seu fazedor, e a fim para que ele fez tal obra. E pois que nos capítulos ante destes temos posto o senhor infante por principal obrador destas coisas, dando-nos dele aquele claro conhecimento que podemos, bem é que em este presente capítulo saibamos a fim porque as fez. E vós deveis bem de notar que a magnanimidade deste príncipe, por um natural constrangimento, o chamava sempre para começar e acabar grandes feitos, por cuja razão depois da tomada de Ceuta sempre trouxe continuadamente navios armados contra os infiéis; e porque ele tinha vontade de saber a terra que ia além das ilhas Canárias, e de um cabo que se chamava Bojador, porque até aquele tempo, nem por escrita nem por memórias de nenhuns homens, nunca foi sabido determinadamente a qualidade da terra que ia além do dito cabo […].

E porque o dito senhor quis disto saber a verdade parecendo-lhe que ele ou algum outro senhor se não trabalhasse de o saber; nenhuns mareantes nem mercadores nunca se disso intrometeriam, porque claro está que nunca nenhum destes se trabalham de navegar se não para donde conhecimento esperam proveito; e vendo outrossim com nenhum outro príncipe se trabalhava disto, mandou ele contra aquelas partes seus navios, por haver de tudo manifesta certidão, movendo-se a isso por serviço de Deus e d’el rei D. Duarte, seu senhor e irmão, que naquele tempo reinava. E esta até que foi a primeira razão do seu movimento.

E a segunda foi porque considerou que achando-se naquelas terras alguma povoação de Cristãos, ou alguns tais portos que sem perigo pudessem navegar que se poderiam para estes reinos trazer muitas mercadorias, que se haveriam de bom mercado, segunda razão, pois com eles não tratavam outras pessoas destas partes, nem doutras nenhumas que sabidas fossem; e que isso mesmo levariam para lá das que estes reinos houvessem, cujo tráfego trazeria grande proveito aos naturais.

A terceira razão foi porque se dizia que o poderio dos mouros daquela terra de África era muito maior do que comummente se pensava, e que não havia entre eles Cristãos nem outra alguma geração. E porque todo sisudo, por natural prudência, é constrangido a querer saber o poder do seu inimigo, trabalhou-se o dito senhor de o mandar saber; para determinadamente conhecer até onde chegava o poder daqueles infiéis.

A quarta razão foi porque de XXXI anos que havia guerreava os Mouros, nunca achou rei Cristão nem senhor de fora dessa terra que por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo o quisesse à dita guerra ajudar. Queria saber se se achariam em aquelas partes alguns príncipes Cristãos em que a Caridade e Amor de Cristo fosse tão esforçada que o quisessem ajudar contra aqueles inimigos da Fé.

A quinta razão foi o grande desejo que havia de acrescentar em a santa fé do nosso senhor Jesus Cristo, o trazer a ela todas as almas que se quisessem salvar, conhecendo que todo o mistério da encarnação, morte e paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo foi obrado a este fim, por salvação das almas perdidas, as quais o dito senhor queria, por seus trabalhos e despesas, trazer ao verdadeiro caminho, conhecendo que se não podia ao Senhor fazer maior oferta […]

“Crónica do Descobrimento e Conquista de Guiné”, Gomes Eanes de Zurara

Bibliografia consultada:

– “História de Portugal” (coordenação de José Hermano Saraiva), Vol. III – “A Epopeia dos Descobrimentos – A Dinastia de Avis e a Expansão Ultramarina”, por Newton de Macedo, edição QuidNovi, 2004

CAPÍTULO III

Em que conta a geração de que descende o infante dom Henrique

Duas coisas me movem falar em este presente capítulo da geração deste nobre príncipe.

Primeiramente, porque a longa velhice dos tempos afasta da memória o próprio conhecimento das coisas passadas, as quais se a escritura as não representasse ante nossos olhos, cego seria disso de todo nosso saber. E pois, por representação do presente, aos que hão-de vir me assento a escrever; não devo passar calando a nobreza de tão alta geração (inda que este livro por si há-de possuir apartado volume) pois pode acontecer que os que lerem por este [livro] não saberão parte dos outros. Mas isto, porém, será breve, para me não afastar longe de meu propósito.

Segundamente, para que não corramos de todo com tanta virtude a um próprio lugar mas que demos alguma parte aos primeiros antecessores (porque certo é que a nobreza da linhagem bem esguardada por algum seu descendente – muitas vezes por escusar vergonha ou, por alguma maneira, cobrar excelência – constrange a virtude e alevanta o coração para sofrer maiores trabalhos).

Pelo que, haveis de saber que el-rei D. João, que foi o décimo rei em Portugal (aquele que venceu a grande batalha de Aljubarrota e filhou a mui nobre cidade de Ceuta, em terra de África), foi casado com D. Filipa, filha do duque de Alencastro e irmã del-rei D. Henrique de Inglaterra; da qual houve seis filhos lídimos, scilicet, cinco infantes e uma infante que depois foi duquesa de Borgonha (deixo alguns que em sua nova idade fizeram seu fim). Dos quais filhos, este foi o terceiro. E assim, entre os avoengos do pai e da mãe, a geração de este cinge e abraça o mais nobre e mais alto sangue da Cristandade. E foi também irmão del-rei D. Duarte e tio del-rei D. Afonso, reis que, depois da morte del-rei D. João, reinaram em Portugal.

E isto, como disse, toco sob brevidade, porque, se mais largo o declarar quisesse, abalaria tantas matérias, que por qualquer de elas que o necessário [eu] quisesse seguir, faria tamanha detença que tarde tornaria ao primeiro começo.

“Crónica do Descobrimento e Conquista de Guiné”, Gomes Eanes de Zurara

Bibliografia consultada:

– “História de Portugal” (coordenação de José Hermano Saraiva), Vol. III – “A Epopeia dos Descobrimentos – A Dinastia de Avis e a Expansão Ultramarina”, por Newton de Macedo, edição QuidNovi, 2004

Crónica da Guiné

(ver texto integral)

(via Biblioteca Nacional Digital)