Décadas da Ásia – João de Barros


O Samori, posto que no ar do rosto recebeu Vasco da Gama com graça, tinha tamanha majestade, e assi estava grave naquele seu cátel, que não fez mais movimento par’ele, quando lhe falou, que levantar a cabeça da almofada; e des i acenou ao brâmane que o fizesse assentar em uns degraus do estrado em que tinha o cátel, e aos de sua companhia em outra parte um pedaço afastados, por ver que haviam mister algum repouso, segundo vinham afrontados do caminho. E depois que per um espaço grande esteve notando as pessoas, trajos e autos deles, e praticando em palavras gerais com Vasco da Gama, recebidas dele duas cartas que lhe mandava el-rei D. Manuel, hüa escrita em arábico e outra em língua português, que era da mesma substância, disse-lhe que ele as veria, e depois mais de vagar ouviria a ele; que por então se fosse a repousar. Que quanto ao seu gasalhado, visse com quem queria que fosse — se com mouros, ou com os naturais da terra, — pois ali não havia gente da sua nação, segundo tinha sabido.

Ao que Vasco da Gama respondeu que entre os mouros e cristãos havia diferença acerca da lei que tinham, e outras paixões particulares; e que com os seus vassalos, por ele e os da sua companhia não saberem seus costumes, e temiam de os poder enojar, pedia a sua real senhoria que os mandasse aposentar sem companhia algüa. O que aprouve ao Samori, mandando ao Catual que o contentasse; e louvou Vasco da Gama de homem prudente e cauteloso nas cousas da paz, segundo o mouro Monçaide lhe veo contando pelo caminho, até chegarem à cidade Calecut já bem noite

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Capítulo VIII

Vindo o recado do Samori que fosse, saiu Vasco da Gama com doze pessoas em terra, onde o recebeu um homem nobre, a que eles chamam Catual acompanhado de duzentos homens a pé, deles para levarem o fato dos nossos, e deles que serviam de espada e adaga, como guarda de sua pessoa, e outros de o trazerem aos ombros em um andor, um dos quais andores foi também apresentado a Vasco da Gama para ir nele.

Posto o Catual e ele em caminho para Calecut, chegaram a um templo junto de uma povoação, onde estava aposentado outro Catual, pessoa mais notável, que vinha por mandado do Samori receber Vasco da Gama. O qual, quando saiu a ele, era muita gente de guerra, todos adargados a seu modo. Chegado o Catual a Vasco da Gama, depois que, segundo seu uso, o recebeu com muita cortesia, mandou-lhe dar outro andor que trazia adestro, melhor concertado que aquele em que vinha; e sem fazer mais detença, seguiram seu caminho aos paços del-rei, onde Vasco da Gama esperou pelos seus, que não podiam aturar o curso daqueles que levavam o andor; e os maiores danos que recebiam era do grande povo, que quase os levava afogados, polos ver. E ainda sobr’isso, à entrada de um grande terreiro cercado, era tanta pressa por entrarem na volta deles, que veo o negócio às punhadas, e d’i ao ferro, em que houve feridos e um morto, primeiro que os oficiais del-rei apagassem o arruído; e porém sempre teveram tanto resguardo em as pessoas dos nossos, que em toda a revolta não lhe foi feito algum desacatamento.

Passado aquele terreiro, entraram em um páteo de alpendres, onde acharam Vasco da Gama e o Catual com algüa gente mais limpa esperando por eles; e, sem tomar algum repouso daquela afronta em que vinham, entraram todos em hüa grã casa térrea, em que estava aquele grande Samori da província Malabar, per eles tam desejado de ver. De junto do qual se levantou um homem de grande idade, que era o seu brâmane maior, vestido de hüas vestiduras brancas, representando nelas, e em sua idade e continência, ser homem religioso. E, chegando ao meio da casa, tomou Vasco da Gama pela mão e o foi apresentar ao Samori, o qual estava no cabo da casa, lançado em hüa camilha coberta de panos de seda, posto em um leito a que eles chamam cátel, e ele vestido com um pano d’algodão burnido com algüas rosas de ouro batido semeadas per ele, e na cabeça hüa carapuça de brocado alta, à maneira de mitra cerrada, chea de perlas e pedrarias, e per os braços e pernas, que estavam descobertos, tinha braceletes de ouro e pedraria. E a hüa ilharga deste leito, em que jazia com a cabeça posta sobre hüa almofada de seda rasa com lavores de ouro e maneira de broslado, estava um homem que parecia em trajo e ofício dos mais principais da terra, o qual tinha na mão um prato d’ouro com folhas de bitole, que eles usam remoer por lhe confortar o estômago.

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Neste tempo que Vasco da Gama chegou a ela, posto que geralmente toda esta terra Malabar fosse habitada de gentios, nos portos do ma viviam alguns mouros, mais por razão da mercadoria e trato que por ter algum estado na terra, porque todos os reis e príncipes dela eram do género gentio e da linhagem dos Bramanes, gente a mais douta e religiosa em seu modo de crença de todas aquelas partes.

E o mais poderoso príncipe daquele Malabar era el-rei de Calecut, o qual por excelência se chamava Çamorim que acerca deles é como entre nós o título imperador. Cuja metrópole de seu estado, da qual o reino tomou o nome, é a cidade Calecut, situada em uma costa brava não com grandes e altos edifícios, somente tinha algumas casas nobres de mercadores, mauros da terra, e doutros do Cairo e Meca ali residentes, por causa do trato da especiaria, onde recolhiam sua fazenda com temor do fogo, toda a mais povoação era de madeira coberta de um género de folha de palma a que eles chamam ola.

E como nesta cidade havia grande concurso de várias nações, e o gentio dela mui supersticioso em se tocar com gente fora de seu sangue, principalmente os que se chamavam Bramanes e Naires, destes dois géneros de gente sendo a mais nobre da terra viviam nela mui poucos, toda a outra povoação era de mouros e gentio mecânico. Pela qual causa também el-rei estava fora da cidade em uns paços, que seriam dela quase meia légua, entre palmares, e a gente nobre aposentada por derredor, ao modo que cá temos as quintans.

E porque (segundo dissemos) adiante particularmente escrevemos as cousas deste reino Calecut, não procedemos aqui mais na relação delas.

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E posto que toda esta província Industão seja povoada de dois géneros de povo em crença, um idolatra e outro mahometa, é mui vária em ritos e costumes, e todos entre si a têm repartida em muitos reinos e estados, assim como em os reinos do Moltan, Deli, Cospetir, Bengala em parte, Orixa, Mando, Chitor, Guzarate a que comummente chamamos Cambaia.

É no reino Dacam, dividido em muitos senhorios, que tem estado de reis com o de Pale que jaz entre um e outro.

E no grande reino Bisnagá, que tem debaixo de si alguns régulos com toda a província do Malabar, repartida entre muitos reis e príncipes de mui pequenos estados, em comparação dos outros maiores que calamos, parte dos quais foram isentos e outros súbditos destes nomeados.

E segundo estes povos entre si são belicosos e de pouca fé, já toda esta grande região fora súbdita ao mais poderoso, se a natureza não atalhara à cobiça dos homens com grandes e notáveis rios, montes, lagos, matas e desertos, habitação de muitas e diversas alimárias que impedem passar de um reino a outro. Principalmente alguns notáveis rios, parte dos quais não entrando na madre do Indo e Gange, mas regando as terras que estes dois abraçam com muitas voltas, vêm sair ao grande oceano, e assim muitos esteiros de água salgada tão penetrantes a terra, que retalham a marítima de maneira que se navegam por dentro.

E a mais notável divisão que a natureza pôs nesta terra, é uma corda de montes a que os naturais por nome comum, por o não terem próprio, chamam Gate, que quer dizer serra, os quais montes tendo seu nascimento na parte do norte, vêm correado contra o sul assim como a costa do mar vai a vista dele, deixando entre as suas praias e o sertão da terra uma faixa dela chã e alagadiça, retalhada de água em modo de lezírias em algumas partes, até irem fenecer no cabo Comori, o qual curso de montes se estende perto de duzentas léguas. Pero, começando no rio chamado Carnaté, vizinho ao cabo e monte de Li, mui notável aos navegantes daquela costa em altura de doze graus e meio da parte do norte, entre uma faixa de terra que jaz entre este Gate e o mar, de largura de dez ate seis léguas, segundo as enseadas e cotovelos se encolhem ou bojam, a qual faixa de terra se chama Malabar que terá de comprimento obra de oitenta léguas, onde está situada a cidade Calecut.

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Capítulo VII

Em que se descreve o sítio da terra a que propriamente chamamos Índia dentro do Gange; na qual só contém a província chamada Malabar, um dos reinos da qual é o em que está a cidade Calecut, onde Vasco da Gama aportou

A região a que os geógrafos propriamente chamam Índia, é a terra que jaz entre os dois ilustres e celebrados rios Indo e Gange, do qual Indo ela tomou o nome, e os povos do antiquíssimo reino Deli, cabeça por sítio e poder de toda esta região, e assim a gente Pársea a ela vezinha, ao presente por nome próprio lhe chamam Indostão. E segundo a delineação da tábua que Ptolomeu faz dela, e mais verdadeiramente pela notícia que ora com o nosso descobrimento temos, por excelência bem lhe podemos chamar grão Mesopotâmia. Porque, se os gregos deram este nome que quer dizer “entre os rios” àquela pequena parte da região Babilónica que abraçam os dois rios Eufrates e Tigres; assim pela situação desta entre as correntes dos notáveis Indo e Gange, que descarregam e vazam suas águas em o grande oceano oriental, por fazermos diferença dela mais notável do que se faz em dizer Índia dentro do Gange, e Índia além do Gange, bem lhe podemos chamar a grão Mesopotâmia, ou Indostão, que é o próprio nome que lhe dão os povos que a habitam e vizinham, por nos conformarmos com eles.

A qual região, as correntes destes dois rios por uma parte, e o grande Oceano Índico por outra, a cercam de maneira, que quase fica uma chersoneso entre terras de figura de lisonja, a que os geómetras chamam rombos, que é de iguais lados e não de anglos retos: Cujos ângulos opostos em maior distância, jazem norte sul, o ângulo desta parte do sul, faz o cabo Comori, e o da parte do norte, as fontes dos mesmos rios. As quais, pero que sobre a terra arrebentem distintas em os montes a que Ptolomeu chama Imão, e os habitadores deles Dalanguer e Nangracot, são estes tão conjuntos uns aos outros, que quase querem esconder as fontes destes dois rios. E, segundo fama do gentio comarcão, parece que ambos nascem de uma veia comum, donde nasceu a fábula dos dois irmãos que anda entre eles, a qual recitamos em a nossa “Geografia”. A distancia destas fontes ao cabo Comori a elas oposto, será pouco mais ou menos por linha directa, quatrocentas léguas, e, os outros dois ângulos, que por contrária linha jazem de levante a poente por distância de trezentos léguas, fazem as bocas dos mesmos rios Indo e Gange, ambos mui soberbos com as águas do grande número dos outros que se neles meterem. E quase tanta é a parte da terra que eles abraçam, quanta a que por os outros dois lados cerca o mar oceano, que ambos se ajuntam no cabo Comori a fazer aquele agudo canto que ele tem, com que fica a figura da lisonja que dissemos.

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E porque da figura e uso delas tratámos em a nossa “Geografia” em o capítulo dos instrumentos da navegação, baste aqui saber que servem a eles naquela operação que ora acerca de nós serve o instrumento a que os mareantes chamam balhestilha, de que também no capítulo que dissemos se dará razão dele é dos seus inventores.

Vasco da Gama, com esta e outras práticas que por vezes teve este piloto, parecia-lhe ter nele um grão tesouro, e por o não perder, o mais em breve que pôde depois que meteu, por consentimento de el-rei, um padrão por nome Espírito Santo na povoação dizendo ser em testemunho da paz e amizade que com ele assentara se fez à vela caminho da Índia, a vinte quatro dias de Abril.

E atravessando aquele grande golfão de setecentas léguas que há de uma à outra costa, por espaço de vinte dois dias sem achar cousa que o impedisse, a primeira terra que tomou foi abaixo da cidade Calecut, obra de duas léguas, e daqui por pescadores da terra, que logo acudiram aos navios, foi levado a ela.

A qual, como era o termo de sua navegação, e na instrução que levava nenhuma outra cousa lhe era mais encomendada, e para o rei de ela nomeadamente levava cartas e embaixada, como ao mais poderoso príncipe daquelas partes e senhor de todas as especiarias, segundo a notícia que naquele tempo neste reino de Portugal tínhamos dele, pareceu aos nossos vendo-se diante dela que tinham acabado o fim de seus trabalhos.

E posto que, adiante particularmente descrevemos o sítio desta cidade Calecut e da região Malabar em que ela está, a qual região é uma parte da província da Índia, aqui, por ser a primeira entrada em que os nossos tomaram posse deste descobrimento por tantos anos continuado e requerido, faremos uma universal relação da província da Índia para melhor entendimento desta chegada de Vasco da Gama.

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E desta prática e modo que Vasco da Gama teve com el-rei, ficou ele tão seguro contente de sua amizade, que logo quis ir ver os nossos navios rodeando a todos, e por honra de sua ida lhe mandou Vasco da Gama entregar todos os mouros que tomou no zambuco, os quais guardou para lhe dar naquele dia das vistas. O que el-rei muito estimou, e muito mais dizer-lhe Vasco da Gama como el-rei seu senhor tinha tanta artilharia e tantas maiores naus que aquelas, que poderiam cobrir os mares da Índia, com as quais o poderia ajudar contra seus imigos, porque fazia el-rei conta que a pouco custo por aquela via tinha ganhado um rei poderoso para suas necessidades. Espedido Vasco da Gama dele depois que o deixou desembarcado tornou-se aos navios, e os dias que ali esteve, sempre foi visitado dele com muitos refrescos, que deu causa a ser também visitado de uns mouros que ali estavam do reino de Cambaia, em as naus que lhe tinham dito os mouros que tomou no zambuco.

Entre os quais vieram certos homens a que chamam Baneanes do mesmo gentio do reino de Cambaia, gente tão religiosa na seita de Pitágoras, que até a imundícia, que criam em si, não matam, nem comem cousa viva, dos quais copiosamente tratámos em a nossa “Geografia”. Estes, entrando em o navio de Vasco da Gama, e vendo na sua câmara uma imagem de Nossa Senhora em um retábulo de pincel, e que os nossos lhe faziam reverência, fizeram eles adoração com muito maior acatamento, e, como gente que se deleitava na vista daquela imagem, logo ao outro dia tomaram a ela, oferecendo-lhe cravo, pimenta, e outras mostras de especiaria das que vieram ali vender. E se foram contentes dos nossos pelo gasalhado que receberam e maneira de sua adoração, também eles ficaram satisfeitos do seu modo, parecendo-lhe ser aquela gente mostra de alguma Cristandade, que haveria na Índia do tempo de São Tomé, entre os quais vinham um mouro Guzarate de nação chamada Malemo Caná; o qual, assim pelo contentamento que teve da conversação dos nossos, como por comprazer a el-rei que buscava piloto para lhe dar, aceitou querer ir com eles.

Do saber do qual, Vasco da Gama depois que praticou com ele ficou muito contente, principalmente quando lhe mostrou uma carta de toda a costa da Índia arrumada ao modo dos mouros, que era em meridianos e paralelos mui miúdos sem outro rumo dos ventos. Porque, como o quadrado daqueles meridianos e paralelos era mui pequeno, ficava a costa por aqueles dois rumos de norte sul e leste oeste mui certa, sem ter aquela multiplicação de ventos, de agulha comum da nossa carta, que serve de raiz das outras. E amostrando-lhe Vasco da Gama o grande astrolábio de pau que levava, e outros de metal com que tomava a altura do sol, não se espantou o mouro disso; dizendo que alguns pilotos do Mar Roxo usavam de instrumentos de latão de figura triangular e quadrantes com que tomavam a altura do Sol, e principalmente da estrela de que se mais serviam em a navegação. Mas que ele e os mareantes de Cambaia e de toda a Índia, pero que a sua navegação era por certas estrelas assim do norte como do sul, e outras notáveis que cursavam por meio do céu de oriente a poente, não tomavam à sua distância por instrumentos semelháveis àqueles mas por outro de que se ele servia, o qual instrumento lhe trouxe logo amostrar, que era de três tábuas.

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Espedidos estes dois mouros contentes do que lhe Vasco da Gama disse e deu, com algumas peças que também levaram para el-rei, assim aproveitou ante ele o recado e presente, que concedeu nas vistas da maneira que Vasco da Gama pedia.

A qual facilidade os nossos atribuíram mais à obra de Deus que a outra cousa, porque, segundo achavam os mouros daquelas partes ciosos de suas terras, não podiam dar outra causa, pois um rei sem ter deles mais notícia que a que lhe dera o mouro, e sem alguma necessidade se vinha meter no mar tão confiadamente. E, praticando todos sobre este caso e do modo que feriam nestas vistas, assentou Vasco da Gama que seu irmão e Nicolau Coelho ficassem em os navios a bom recado, e tanto a pique que pudessem acudir a qualquer necessidade, e ele com todos os batéis e a mais limpa gente da frota vestidos de festa por fora e armas secretas, com grande aparato de bandeiras, e toldo no batel, fosse ao lugar das vistas. A qual ordem se teve quando veio ao dia delas, partindo Vasco da Gama dos navios com grande estrondo de trombetas, o que tudo respondia com as vozes de gente animando-se uns aos outros em prazer daquela festa, porque como era na terceira oitava da Páscoa, tempo em que eles cá no reino eram costumados a festas e prazer, parecia-lhes que estavam entre os seus.

Vasco da Gama, indo assim neste auto, a meio caminho mandou suspender o remo, por el-rei não ser ainda recolhido ao seu zambuco, o qual vinha ao longo da praia metido em um esparável de seda com as cortinas da parte do mar alevantadas, e ele lançado em um andor sobre os ombros de quatro homens, cercado de muita gente nobre, e a do povo diante e detrás bem afastada para darem vista aos nossos, todos com grande aparato de festa e tangeres a seu modo.

Entrado el-rei no zambuco com algumas pessoas principais e menestréis que tangiam, toda a mais gente que pôde se embarcou por outros barcos cercando el-rei por todas as partes, somente deixaram uma aberta, que tinha a vista para os nossos, em modo de cortesia. E o primeiro sinal de paz que lhe Vasco da Gama mandou fazer, calando-se os instrumentos de festa, foi mandar tirar os da guerra que eram alguns berços espingardas, e no fim deles uma grande grita, ao que responderam os nossos navios com outra tal obra até tirarem as câmaras da artilharia. A qual trovoada, como era cousa nova nas orelhas daquela gente, foi para eles tão grande espanto que houve entre todos rumor de se colher a terra. Pero, sentindo Vasco da Gama a torvação deles, mandou fazer sinal com que cessou aquele tom que os assombrava, e de si chegou-se ao zambuco de el-rei, o qual o recebeu como homem em cujo peito não havia má tenção, e em toda a pratica que ambos tiveram, que durou um bom pedaço, tudo foi com tanta segurança de ambas as partes como se entre eles houvera conhecimento de mais dias.

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Capítulo VI

Como Vasco da Gama chegou à vila de Melinde, onde assentou paz com o rei dela e pôs um padrão; e havido piloto se partiu para a Índia onde chegou

Seguindo Vasco da Gama seu caminho com esta presa de mouros, ao outro dia, que era de páscoa da Ressurreição, indo com todos os navios embandeirados e a companhia deles com grandes folias por solenidades da festa, chegou a Melinde. Aonde logo por um degredado, em companhia de um dos mouros, mandou dizer a el-rei quem era e o caminho: que fazia e a necessidade que tinha de piloto e que esta fora a causa de tomar aqueles homens, pedindo que lhe mandasse dar um.

El-rei, havido este recado, posto que ao nome Cristão tivesse aquele natural ódio que lhe tem todos os mouros, como era homem bem inclinado e sisudo, sabendo por este mouro o modo de como os nossos se houveram com eles, e que lhe pareciam homens de grande ânimo no feito da guerra, e na conversação brandos e caridosos, segundo o bom tratamento que lhe fizeram depois de os tomarem, não querendo perder amizade de tal gente com más obras, como perderam os outros príncipes por cujos portos passaram, assentou de levar outro modo com eles em quanto não visse sinal contrário do que lhe este mouro contava. E logo por ele e pelo degredado mandou dois homens ao capitão, mostrando em palavras o contentamento que tinha de sua vinda, que descansasse porque pilotos e amizade tudo acharia naquele seu porto, e que em sinal de seguridade lhe mandava aquele anel de ouro, e lhe pedia houvesse por bem de sair em terra para se ver com ele.

Ao que Vasco da Gama respondeu conforme a vontade de el-rei, pero quanto ao sair em terra a se ver com ele, ao presente não o podia fazer, por el-rei seu senhor lho defender, até levar seu recado a el-rei de Calecut e a outros príncipes da Índia. Que para eles ambos assentarem paz e amizade, por ser a cousa que lhe el-rei seu senhor mais encomendava, nenhum outro modo lhe parecia melhor por não sair do seu regimento, que ir ele em seus batéis até junto da praia e sua real senhoria meter-se naqueles zambucos com que ambos se poderiam ver no mar porque, para ele ganhar por amigo tão poderoso príncipe como era el-rei de Portugal cujo capitão ele era, maiores cousas devia fazer.

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E, passados dous dias, por não dar má suspeita de si, quando veio ao terceiro, em que assentou sua entrada, vieram da cidade muitos barcos com gente vestida de festa e tangeres, mostrando que polo honrar vinham naquele auto de prazer, repartindo-se pelos navios. E, porque entre Vasco da Gama e os outros capitães estava assentado que não consentissem entrar em os navios mais que dez ou doze pessoas, cometendo eles esta entrada, foram à mão aos muitos, dizendo que pejavam a mareagem, que, depois, na cidade, tempo lhe ficava pera os verem.

No qual tempo, feito um sinal, mandou Vasco da Gama desferir a vela com grande prazer de todos: dos mouros, parecendo-lhe levar a presa que desejavam; e dos nossos, cuidando que em achar tão luzida gente, e as novas que lhe davam da Índia, tinham acabado o fim de seus trabalhos; estando eles àquela hora em perigo de perderem as vidas, segundo a tenção com que eram levados.

Mas Deus, em Cujo poder estava a guarda deles neste caminho tanto de Seu serviço, não permitiu que a vontade dos mouros fosse posta em obra, porque quase milagrosamente os livrou, descobrindo suas tenções per este modo. Não querendo o navio de Vasco da Gama fazer cabeça pera a vela tomar vento, começou de ir descaindo sobre um baixo; e, vendo ele o perigo, a grandes brados mandou soltar hüa âncora. E como isto, segundo costume dos mareantes nos tais tempos, não se pode fazer sem per todo o navio correr de hüa parte a outra aos aparelhos, tanto que os mouros que estavam per os outros navios viram esta revolta, parecendo-lhe que a traição que eles levavam no peito era descoberta, todos uns por cima dos outros lançaram-se aos barcos. Os que estavam em o navio de Vasco da Gama, vendo o que estes faziam, fizeram outro tanto; até o piloto de Moçambique que se lançou dos castelos de popa ao mar, tamanho foi o temor em todos.

Quando Vasco da Gama e os outros capitães viram tão súbita novidade, abriu-lhe Deus o juízo pera entenderem a causa dela; e, sem mais demora, assentaram logo de se partir ao longo daquela costa, por terem já sabido ser muito povoada, e que podiam achar por ela navios de mouros, de que houvesse algum piloto.

Os mouros, porque entenderam o que eles haviam de fazer, logo aquela noute vieram a remo surdo pera cortar as amarras dos navios; mas não houve efeito sua maldade, por serem sentidos.

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