Era uma vez… Portugal


O INFANTE D. HENRIQUE E A UNIVERSIDADE

Comemoramos este ano os 600 anos do nascimento do Infante D. Henrique. Esta efeméride obriga-nos a prestar uma atenção especial a esta personagem, ao homem que ficou na História como o impulsionador e responsável pelo arranque dos Descobrimentos Portugueses. É, de facto, esta a faceta mais conhecida do Infante D. Henrique, aquela que surge referida nos manuais de História. Porém, o Centenário do seu nascimento é uma boa ocasião para irmos um pouco mais além, para conhecermos um pouco melhor outros aspectos da sua biografia e da sua acção a outros níveis. Vamos hoje falar do Infante D. Henrique enquanto protector da Universidade de Lisboa, referindo a sua acção decisiva em prol da instituição e assinalando o papel decisivo que desempenhou na reforma universitária.

A Universidade havia sido criada em 1290 por D. Dinis, sob a designação de Estudos Gerais, tendo ficado sediada em Lisboa. Durante o século seguinte mudaria várias vezes de sede, oscilando entre a capital e Coimbra. De facto, a instituição enfrentava grandes dificuldades, e só a custo conseguiria sobreviver e transformar-se numa verdadeira Universidade. Foi o rei D. Fernando quem deu o primeiro grande impulso, ao fixá-la de vez em Lisboa e ao proceder a importantes reformas e melhoramentos, nomeadamente na sua organização e jurisdição, melhorando a qualidade de ensino ao promover a vinda de professores qualificados de várias universidades estrangeiras, mas sobretudo ao providenciar boas instalações para a Universidade, garantindo também alojamentos para professores e estudantes. Na crise de 1383-85, a instituição desempenha um importante papel, pois o futuro D. João I rapidamente compreendeu a importância de ganhar o apoio da Universidade para a sua causa. Logo em 1384 concede-lhe uma série de importantes privilégios; em troca, conta com o apoio de vários legistas, entre os quais o de mestre João das Regras, que defendeu a causa do Mestre de Avis nas Cortes de Coimbra. Ganha a guerra com Castela, assegurada definitivamente a posição da dinastia de Avis no trono de Portugal, o novo rei amplia os privilégios e procede a diversas reformas na Universidade, de modo a eliminar de vez os velhos problemas e deficiências da instituição e a equipará-la ao níveis das melhores universidades da Europa. Uma das medidas que tomou foi destacar alguém de sua inteira confiança para tratar dos assuntos referentes á Universidade, criando o cargo de “Protector dos Estudos de Portugal”. Foi este cargo que o Infante D. Henrique desempenhou durante boa parte da sua vida, e que selaria a sua ligação ao mundo académico.

Não se conhece a data exacta em que o Infante D. Henrique foi nomeado Protector da Universidade. Sabe-se, sim, que, tal como o seu irmão D. Pedro, desde cedo se mostrou interessado nos problemas da reforma académica. É provavelmente a partir de 1431, data em que se promulgam os Estatutos da Universidade, que o Infante toma a seu cargo a condução da instituição, exercendo uma profunda influência que duraria até á sua morte em 1460. De facto, é com o Infante D. Henrique que o Estudo Geral de Lisboa se torna uma verdadeira Universidade. Os estatutos aprovados naquele ano de 1431 definem com clareza a forma e o conteúdo da vida académica, como seja os graus concedidos, o número e a duração dos cursos, as formas de avaliação e os juramentos que cada graduado deveria efectuar, assim como algumas regras de conduta a cumprir, de que apresentamos um pequeno excerto abreviado do documento em latim:

“Os mestres e doutores deverão apresentar-se nas aulas e nos actos escolares com os trajes doutorais; leitores, licenciados e bacharéis em traje próprio, pelo menos até aos calcanhares; os demais também em traje próprio, pelo menos até ao meio da perna. Que nenhum escolar tenha em sua casa cavalo, jumento, cães, aves de caça ou, permanentemente, mulher duvidosa. Caso contrário, não desfrutará os privilégios do Estudo.”

A Universidade era nesse tempo bem diferente da dos nossos dias. O ensino estava associado á Igreja, cujos rendimentos suportavam as despesas da Universidade. Esta dependia assim em grande parte do Papa, sobretudo no que toca ás matérias a ensinar. Por exemplo, o curso de Teologia estava dependente de autorização papal, e só com o ensino desta matéria é que o Estudo Geral de Lisboa se tornava uma verdadeira Universidade. Embora o Papa tenha dado o seu consentimento ainda antes do ano de 1400, acontece que os custos que tal curso acarretava impossibilitaram durante vários anos a sua efectivação. Só em 1448, e graças ao Infante, é que tal foi possível, e portanto só neste ano é que a Universidade podia ser assim chamada. Para tal D. Henrique disponibilizou parte dos rendimentos que recebia da ilha da Madeira, cuja continuidade ficou garantida no seu próprio testamento. Tomou também algumas medidas no sentido de aumentar as fontes de rendimento da Universidade, de forma a garantir algum desafogo financeiro. Conseguiu, assim, anexar ao Estudo Geral os rendimentos de várias igrejas, e estipulou em algum casos o pagamento de propinas.

A acção do Infante D. Henrique não se limitou á mera questão financeira. De facto, sabemos que manifestava uma grande preocupação com a qualidade do ensino e com as suas condições, acompanhando de perto a resolução dos problemas existentes. Em primeiro lugar, dotou a Universidade de casas próprias, de modo a evitar futuros problemas de instalações e de alojamentos para os professores e estudantes. Depois, aperfeiçoou o controle dos funcionários sobre as situações irregulares, de modo a assegurar o bom funcionamento do ensino. Por exemplo, toma conhecimento que alguns professores (que se chamavam na época lentes) recebiam o ordenado mas faltavam frequentemente, pelo que ordena o seguinte:

“O dia em que o lente não ler, seja-lhe descontado, se substituto não puser; e se o quiser pôr, mando que o ponha com consentimento dos escolares e aja a metade do salário, e não mais”.

O problema da ligação entre o saber teórico e livresco que se ensinava nas universidades e o saber prático de navegação que os portugueses ampliavam na época, igualmente sob orientação do mesmo Infante, é algo que se discute ainda hoje em dia. Sabe-se que a famosa Escola de Sagres não foi uma escola no sentido estrito do termo, mas sim a designação do conhecimento prático de navegação, astronomia e cartografia lentamente desenvolvido pelos marinheiros portugueses. De uma maneira geral, aceita-se que o que se aprendia nas universidades de pouco ou nada servia para as viagens de descobrimento, pois estas resultavam da prática dos homens do mar e da resolução dos problemas concretos, e não de velhas ideias, muitas vezes erradas, transmitidas pelos geógrafos da Antiguidade. As viagens de Descobrimento resultavam assim de verdadeiros conhecimentos e tecnologias “de ponta” e não do saber livresco. Porém, alguns historiadores conseguem detectar uma ligação entre as duas esferas, do seguinte modo: sob orientação do Infante foram introduzidas novas cadeiras na Universidade, que curiosamente se ligam de algum modo com as viagens de descobrimento: Aritmética, Geometria e Astrologia. Porém, embora tal facto fosse provavelmente mais do que uma simples coincidência, a verdade é que o Infante sabia, ou veio mais tarde a aperceber-se que o futuro dos Descobrimentos estava nas mãos dos marinheiros de Lagos e não dos estudantes e professores de Lisboa.

Paulo Jorge de Sousa Pinto – texto de apoio a programas de rádio sob a designação “Era uma vez… Portugal”, emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

Tomé Pires e a Primeira Embaixada Europeia à China

Portugal pode orgulhar-se de ter descoberto novas terras, desbravado novos caminhos e trilhado pela primeira vez diversas rotas marítimas. Este fim de milénio é propício á comemoração de diversos feitos praticados pelos nossos antepassados há quinhentos anos; mesmo agora, em 1993, nunca é demais referir o facto de se comemorar os 450 anos da chegada dos portugueses ao Japão. Mas quanto á vizinha China, Portugal não tem assinalado devidamente a presença portuguesa no século XVI. Quando se fala na China, surge-nos geralmente o nome de Marco Polo, como autor da grande divulgação deste país na Europa nos finais da Idade Média. O que, por vezes, esquecemos, é que a primeira embaixada europeia á China foi portuguesa, levada a cabo por um homem singular, chamado Tomé Pires. É deste português, da sua vida e da sua missão no Império do Meio que vamos falar hoje.

Tomé Pires nasceu em Lisboa, onde viveu a maior parte da sua vida. O seu pai era boticário do rei D. João II, e Tomé, naturalmente, aprende desde cedo as artes e os conhecimentos da profissão. Tal foi o seu desempenho que conseguiu, com pouco mais de 20 anos, tornar-se o boticário do príncipe D. Afonso. Várias vicissitudes da sua vida levaram-no a partir, em 1511, para a Índia, onde os portugueses consolidavam posições e ampliavam consideravelmente os seus domínios. Durante alguns anos visita várias cidades, nomeadamente Malaca, recém-conquistada por Afonso de Albuquerque e que abriu aos portugueses as portas do Extremo Oriente. É aqui que escreve uma descrição do Oriente, uma obra ímpar de rigor, seriedade e veracidade, a que chamou Suma Oriental, e que é hoje um livro extraordinário para o estudo quer dos portugueses no Oriente, quer das civilizações asiáticas.

Porém, Tomé Pires nunca sairia do anonimato se não tivesse sido a sua nomeação para chefiar a embaixada que o rei D. Manuel havia ordenado que se enviasse ao grande império da China, para estabelecer relações de amizade e acordos de comércio. A sua educação e diplomacia, a sua seriedade e rigor, para além dos excelentes conhecimentos botânicos, tornavam-no no homem ideal para conduzir a bom termo esta empresa arriscada. Pires parte, assim, para a China, chegando á costa chinesa em Agosto de 1517. É bem recebido por uma armada chinesa, seguindo para Cantão. Aqui começam os problemas. Os portugueses, como outros povos, tinham como hábito e sinal de amizade fazer uma saudação, ao chegarem a um porto, com tiros de canhão. Na China, porém, isto foi encarado como uma ofensa e sinal de falta de respeito, lançando dúvidas aos chineses sobre as intenções dos estrangeiros. Após negociações, o assunto é resolvido, recebendo então Pires autorização para desembarcar, o que faz do seguinte modo:

“[desembarcou] no cais de pedra, com grande estrondo de artilharia e trombetas, e a gente vestida de festa, ele e sete portugueses, que ficaram em sua companhia para irem com ele a esta embaixada, foram levados a seus aposentos, que eram umas casas das mais nobres que havia na Cidade.”

Estes primeiros contactos foram coroados de êxito, demonstrando os funcionários chineses grande entusiasmo em preparar a viagem do embaixador a Pequim, onde entregaria cartas do rei D. Manuel e presentes ao Imperador. Porém, Pires terá que esperar até 1520, quando recebe finalmente autorização para avançar para Pequim. Entretando, os navios portugueses haviam regressado já a Portugal, contando a D. Manuel o sucedido e o bom prosseguimento da missão.

Chegado a Pequim, estabelece então os contactos com a Corte e o Imperador. A embaixada de Tomé Pires acabará por falhar, devido a uma infeliz série de acasos desfavoráveis aos portugueses. Em primeiro lugar, as dificuldades provocadas pela língua dificultavam e, por vezes, impediam mesmo a comunicação e o esclarecimento de mal-entendidos. Por exemplo, o imperador da China tinha cartas dos seus governadores de Cantão que diziam que o rei português D. Manuel estava disposto a declarar-se vassalo da China, o que, evidentemente, era falso, e que causou alguns dissabores a Tomé Pires. Depois, começavam a chegar todo o tipo de queixas, reais ou inventadas, sobre abusos e roubos feitos pelos portugueses. Sobre isto diz o cronista João de Barros:

“(…) diziam que comprávamos moços e moças furtadas, filhos de pessoas honradas, e que os comíamos assados, as quais coisas eles criam ser assim, porque de gente que nunca tiveram notícia, e éramos terror e medo a todo aquele Oriente”.

A má fama dos portugueses cresce, de facto, durante este tempo, comprometendo de vez o sucesso da embaixada. Outro factor desfavorável ocorreu ainda: o sultão de Malaca, que os portugueses haviam expulso aquando da conquista da cidade, declarara-se vassalo do Imperador da China, e vinha agora fazer campanha contra os portugueses, acusando-os de serem ladrões e piratas. Finalmente, o Imperador havia tratado os portugueses com cortesia, perdoando o seu desconhecimento das regras de etiqueta chinesa, mas a sua morte neste tempo veio abrir caminho aos funcionários chineses, que desde cedo se haviam mostrado avessos aos portugueses. Assim, recusam os presentes que Pires pretendia oferecer, e mandam embora a embaixada, preparando a sua destruição. Quando os portugueses chegam a Cantão são presos, e os navios dos que os esperavam, atacados e destruídos. É exigida a entrega de Malaca em troca do embaixador e dos seus homens. Assim, todos os portugueses, á excepção de Pires e de um companheiro, são condenados á morte sob acusação de serem ladrões. Quanto a Tomé Pires, nada mais se sabe de concreto. Fernão Mendes Pinto, que por lá passou mais de vinte anos depois, diz ter encontrado uma mulher cristã que lhe disse chamar-se Inês de Leiria, orfã, e ser filha de Tomé Pires. Diz também que encontrou um homem velho que lhe disse o seguinte:

“Sou (…) um pobre cristão português, por nome Vasco Calvo, (…) que agora faz vinte e sete anos que nesta terra fui cativo com Tomé Pires, que Lopo Soares mandou a este Rei china, que depois acabou desastradamente por um desarranjo de um capitão português”.

Assim, é possível que Tomé Pires tivesse sido exilado de Cantão, e não tivesse sofrido a mesma sorte dos seus companheiros. Se as contas de Fernão Mendes Pinto estão correctas, então terá morrido cerca de 1540. De qualquer modo, o fracasso da sua missão atrasou em cerca de trinta anos o estabelecimento de relações entre Portugal e a China, sendo durante este tempo interdita a entrada de portugueses no território chinês. A fixação dos portugueses em Macau coroou definitivamente o relacionamento entre chineses e portugueses que agora, passados quatro séculos e o período dos Descobrimentos, Portugal devolveu de vez á China em 1999.

Paulo Jorge de Sousa Pinto – texto de apoio a programas de rádio sob a designação “Era uma vez… Portugal”, emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

OS PORTUGUESES EM TIMOR NOS SÉCULOS XVI E XVII

Uma dos erros mais comuns sobre a História de Timor, veiculado hoje em dia sobretudo pelos indonésios ou pelos seus simpatizantes, é o de que a ilha sofreu 500 anos de colonialismo português. A verdade histórica, porém, é bem diferente. De facto, só muito tarde, nos finais do século passado, é que os portugueses passaram a exercer um controle directo sobre a parte oriental da ilha, dominando-a militarmente e submetendo as autoridades locais. Ao mesmo tempo, impuseram um aparelho administrativo e desenvolveram a economia assente nas plantações de café. Até esta data, a presença portuguesa limitara-se aos contactos pacíficos, ao comércio, á evangelização ou á aliança com diversos reinos da ilha, participando por vezes activamente na política e nas guerras locais, consoante as épocas, mas sem elementos de domínio colonial. Hoje vamos falar da chegada dos portugueses a Timor, e vamos contar como se interessaram pelas riquezas e pelas gentes da ilha, durante os séculos XVI e XVII.

Os portugueses chegaram a Timor, provavelmente, em 1514 ou 1515; não se conhecem, porém, os nomes destes homens, nem as circunstâncias da sua viagem. Após a conquista de Malaca por Afonso de Albuquerque, em 1511, os portugueses tomam contacto com o vasto Extremo Oriente, obtendo informações sobre a China, o Japão e, sobretudo, as ilhas das especiarias, sobretudo Java, Banda e as Molucas. Timor, embora não tivesse especiarias, produzia no entanto uma madeira preciosa muito apreciada, o sândalo. Nesta época, os timorenses não se interessavam em levar o sândalo aos mercados asiáticos; pelo contrário, eram mercadores estrangeiros, como os javaneses ou os malaios, que se dirigiam á ilha, compravam a madeira preciosa e a transportavam para os grandes entrepostos comerciais, como Malaca. Quando esta cai nas mãos dos portugueses, estes interessam-se imediatamente pelo comércio deste produto, tentando alcançar a ilha de onde provinha.

O sândalo de Timor provém de uma grande árvore, que pode levar cem anos a atingir o seu tamanho ideal. Garcia de Orta descreve-a do seguinte modo:

“é uma árvore do tamanho de uma nogueira, e a folha como a da aroeira; deita flor azul escura e dá uma fruta verde do tamanho de uma cereja, e cai azinha, e é primeiro verde, e depois preta e sem sabor.”

O sândalo, como madeira preciosa, era utilizado para a feitura de objectos de adorno; mas as suas propriedades, sobretudo o seu aroma agradável, levavam a que tivesse outras utilizações, sendo usado como perfume ou mesmo como medicamento muito apreciado e útil.

Assim, Timor passou a ser frequentemente visitada pelos portugueses, em busca deste produto tão cobiçado. Timor estava dividido em inúmeros pequenos reinos, que combatiam entre si em pequenas guerras intermináveis. Estes reinos, porém, agrupavam-se em duas grandes confederações rivais, uma a oeste, uma a leste da ilha. Os seus habitantes eram grandes guerreiros, e a ilha vivia num estado de permanente turbulência. Da viagem de circum-navegação do globo, de Fernão de Magalhães, chegou-nos esta descrição:

“Como as mulheres, os homens andam nus, usando apenas certas coisas de ouro redondas como um trincho, amarradas ao pescoço; no cabelo usam pentes de cana enfeitados com anéis de ouro. Alguns trazem nas orelhas, seguros por anéis de ouro, gargalos de cabaças secas. (…) Esta é a única ilha onde se encontra o sândalo branco. (…) Chama-se Timor.”

Em 1566 teve início uma nova etapa na História dos portugueses em Timor. Por iniciativa do missionário frei António Taveira, iniciou-se a missionação da ilha, assim como de outras vizinhas, que passaram a estar a cargo dos dominicanos. Timor passou a estar anexo á pequena ilha de Solor, onde se constrói uma pequena fortaleza e que constitui a base do trabalho dos missionários na região. Aliás, já anteriormente os portugueses haviam preferido esta ilha a Timor, pois oferecia melhores condições de segurança para os navios, e as populações eram menos turbulentas. Assim, a evangelização foi a verdadeira raiz da fixação portuguesa em Timor, assistindo-se ainda no século XVI á conversão do primeiro reino, o de Mena. Os missionários portugueses enfrentavam a influência da religião muçulmana, que avançava na região, mas nunca criou raízes em Timor. Com a chegada dos holandeses e dos ingleses, nos finais do século XVI, agravaram-se as condições da presença portuguesa na região, mas em Timor a sua influência manteve-se.

A importância de Timor era já considerável nos meados do século XVII. Foi, aliá, para esta ilha que se refugiou o bispo de Malaca e parte dos portugueses desta cidade, quando os holandeses a conquistaram em 1641. É, aliás, nesta data que a rainha de Mena, ameaçada por um poderoso rei muçulmano de uma ilha vizinha, pede protecção aos portugueses, estabelecendo uma aliança política que se multiplicaria noutros casos. Os holandeses passam, também, a frequentar as costas de Timor em busca do cobiçado sândalo, ameaçando a presença portuguesa, que nesta época tomava já a forma de uma mestiçagem bem misturada com a população local. A ameaça holandesa acaba por confinar os portugueses á ilha, para onde se transfere o capitão de Solor de onde tinha sido expulso.

Nesta época, a ilha levava uma existência autónoma: a grande distância que a separava de Goa, agravada pelas constantes interferências dos holandeses no Oriente, levou a que a autonomia da ilha fosse quase total. Aliás, durante parte do século XVII, o poder é disputado entre dois mestiços portugueses, que se degladiam com o apoio alternado de diversos reinos da ilha, arrastando o capitão português para um papel insignificante. São, de facto, os mestiços, apoiados nas armas de fogo portuguesas, quem controla a ilha, e não Goa ou Lisboa. A influência profunda da missionação na ilha levou a que esta tivesse sempre resistido ás investidas dos holandeses, que só muito tarde conseguiram uma influência mais acentuada.

A origem da divisão da ilha em duas metades teve esta origem: a instabilidade permanente entre os diversos reinos levou a que os holandeses se aproveitassem para se estabelecerem na ilha. Como já afirmámos, esta estava dividida em duas grandes confederações: uma solicitou o apoio holandês, outra pediu socorro aos portugueses. A parte oriental, ficando sob influência portuguesa, veria crescer a sua diferençiação em relação ás ilhas vizinhas, assim como á metade ocidental. No século XVIII, a relação política entre Portugal e Timor-Leste toma a forma de aliança ou protectorado político, crescendo a influência quer da língua portuguesa, quer da religião católica. A bandeira portuguesa é vista, para os timorenses, como o símbolo do pacto entre Portugal e Timor-Leste.

Podemos, deste modo, encontrar as raízes da presença portuguesa em Timor, e compreender como, desde muito cedo, se forjou uma identidade cultural própria dos timorenses, distinta dos povos vizinhos, e como a parte oriental da ilha se destacou na sua ligação a Portugal, como é hoje bem visível.

Paulo Jorge de Sousa Pinto – texto de apoio a programas de rádio sob a designação “Era uma vez… Portugal”, emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

TOMÉ PIRES E A “SUMA ORIENTAL”

O contacto com a diversidade das civilizações e culturas asiáticas é certamente um dos aspectos mais importantes e mais interessantes da época dos Descobrimentos. Para além das grandes figuras miltares do Estado da Índia, há que assinalar igualmente os que melhor contribuiram para o conhecimento do mundo asiático, e que deixaram testemunho da sua obra. De entre estes há uma figura que se destaca, a de Tomé Pires. A sua obra, chamada “Suma Oriental”, é um testemunho ímpar de rigor, seriedade e veracidade. Trata-se de uma descrição de todo o Oriente escrita por alguém dotado de uma grande curiosidade e honestidade intelectual, sendo hoje considerada essencial quer para o estudo da presença portuguesa naquelas paragens, quer para a própria história das civilizações asiáticas.

Comecemos por traçar a biografia desta personagem. Tomé Pires nasceu em Lisboa, onde viveu a maior parte da sua vida. O seu pai era boticário do rei D. João II, e Tomé, naturalmente, aprende desde cedo as artes e os conhecimentos da profissão. Tal foi o seu desempenho que conseguiu, com pouco mais de 20 anos, tornar-se o boticário do príncipe D. Afonso. Várias vicissitudes da sua vida levaram-no a partir, em 1511, para a Índia, onde os portugueses consolidavam posições e ampliavam consideravelmente os seus domínios. Durante alguns anos visita várias cidades, nomeadamente Malaca, recém-conquistada por Afonso de Albuquerque e que abriu aos portugueses as portas do Extremo Oriente. Porém, Tomé Pires nunca sairia do anonimato se não tivesse sido a sua nomeação para chefiar a embaixada que o rei D. Manuel havia ordenado que se enviasse ao grande império da China, para estabelecer relações de amizade e acordos de comércio. A sua educação e diplomacia, a sua seriedade e rigor, para além dos excelentes conhecimentos botânicos, tornavam-no no homem ideal para conduzir a bom termo esta empresa arriscada. Pires parte, assim, para a China, chegando á costa chinesa em Agosto de 1517. É bem recebido por uma armada chinesa, seguindo para Cantão, e posteriormente para Pequim, onde seria recebido pelo Imperador.

A embaixada de Tomé Pires acabaria por falhar, devido a uma infeliz série de acasos desfavoráveis aos portugueses. Entre outras causas, os portugueses adquirem uma péssima reputação, tendo começado a circular todo o tipo de queixas e uma série de boatos, como diz o cronista João de Barros:

“(…) diziam que comprávamos moços e moças furtadas, filhos de pessoas honradas, e que os comíamos assados, as quais coisas eles criam ser assim, porque de gente que nunca tiveram notícia, e éramos terror e medo a todo aquele Oriente”.

A embaixada fracassou, e nada mais se soube de Tomé Pires, excepto que a maior parte dos seus companheiros foi executada, ignorando-se se sofreu igualmente tal sorte. Fernão Mendes Pinto, que passou por Cantão mais de vinte anos depois, diz ter encontrado uma mulher cristã que se dizia filha de Tomé Pires, assim como um velho português que lhe terá dito o seguinte:

“Sou (…) um pobre cristão português, por nome Vasco Calvo, (…) que agora faz vinte e sete anos que nesta terra fui cativo com Tomé Pires, que Lopo Soares mandou a este Rei china, que depois acabou desastradamente por um desarranjo de um capitão português”.

Nada mais se sabe, porém, de concreto. A “Suma Oriental” foi escrita em Malaca, enquanto Tomé Pires ali residiu, logo após a conquista da cidade por Afonso de Albuquerque. O mais curioso sobre esta obra é que a mesma só foi descoberta na década de 1940, pelo historiador Armando Cortesão, após uma longa busca, e que a editou. Trata-se de uma descrição de todo o Oriente, desde o Egipto à China. Descreve exaustivamente todos os portos de comércio, de interesse potencial para os portugueses recém-chegados às àguas do Índico, elegendo como objectivo principal as informações de carácter comercial, nemeadamente todos os produtos comerciados em cada reino e em cada porto, assim como as respectivas origens e os mercadores que os traficam. A leitura da obra torna-se, assim, muitas vezes difícil, pela quantidade de informação apresentada.

No entanto, a “Suma Oriental” não se limita a estas informações. O autor demonstra grande interesse pela história local. O caso mais importante é o de Malaca, onde a obra foi escrita. Como Tomé Pires conhecia a língua local, teve assim ocasião de contactar directamente com a cultura da região, obtendo informação sobre as origens desta e de outras cidades da região. Estes dados foram depois incluídos na sua obra, o que lhe confere um valor inestimável para a história local. Por exemplo, a história da fundação de Malaca e da época anterior à chegada dos portugueses teve que ser integralmente reescrita após a descoberta desta obra.

Tomé Pires presta um cuidado especial à descrição dos diversos reinos tratados, desde a organização social e política até ao vestuário, usos e costumes, e até hábitos de alimentação. Eis, por exemplo, o que diz dos chineses, na mais antiga descrição europeia conhecida, dos pauzinhos que usam os chineses na alimentação.:

“Comem todos os chineses porcos, vacas e todas as outras alimárias; bebem gentilmente de toda a sorte de bebidas; gabam muito o nosso vinho e embebedam-se grandemente; é gente fraca (…) esta que se vê em Malaca são de pouca verdade, e furtam; (…) comem com dois paus, e altamia ou porcelana na mão esquerda, junto da boca (…). As mulheres parecem castelhanas (…)”.

Tomé Pires tomou contacto com boa parte das realidades que descreve, tendo obtido informações por contacto directo, ou por relatos de outra gente, fossem portugueses ou asiáticos. A sua abordagem incluía temas do quotidiano das populações, e mesmo aspectos da vida privada, como esta descrição dos hábitos sexuais no Malabar, na costa ocidental indiana:

“Na terra do Malabar, no ajuntamento seu, têm por costume que a fêmea tem os olhos postos na cama e o macho no tecto; e isto geralmente entre grandes e pequenos, (…) e a alguns portugueses costumados na terra não lhes pareceu feio”.

Paulo Jorge de Sousa Pinto – texto de apoio a programas de rádio sob a designação “Era uma vez… Portugal”, emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

DE SAGRES A TORDESILHAS: O INFANTE D. HENRIQUE E O REI D. JOÃO II

Comemoramos neste ano de 1994 o 6º Centenário do nascimento do Infante D. Henrique e o 5º do Tratado de Tordesilhas. É uma ocasião privilegiada para as celebrações oficiais sobre os Descobrimentos, assinalando devidamente o protagonismo dos portugueses nas viagens do século XV. Curiosamente, as duas datas associam-se directamente aos dois homens que marcaram a época, e cuja personalidade foi decisiva para o bom sucesso do empreendimento dos Descobrimentos: o Infante D. Henrique, que iniciou e orientou a sua primeira fase, e o rei D. João II, que veio a continuar a obra do seu tio-avô e a transformá-la numa empresa de Estado. É sobre o papel decisivo da acção destes dois homens que iremos falar hoje.

A quinhentos anos de distância, os Descobrimentos Portugueses do século XV podem-nos hoje parecer algo simples e linear, uma história encadeada de viagens, descobertas e avanços técnicos, permitidos pelas condições políticas, económicas e sociais do Portugal de então. Na verdade, porém, os Descobrimentos foram algo de bem diferente, cheio de contradições, obstáculos e hesitações. Todos sabemos que o primeiro grande passo das viagens de Descobrimento foi a dobragem do Cabo Bojador, em 1434, mas o longo caminho a percorrer até ao Tratado de Tordesilhas, 60 anos depois, seria difícil e penoso, e cujo bom sucesso deve sobretudo á persistência do Infante D. Henrique, primeiro, e de D. João II, depois.

Durante os primeiros tempos, as viagens de Descobrimento da costa africana estiveram associadas aos projectos de conquista de Marrocos, iniciada pela tomada de Ceuta em 1415 e que, pensava-se, poderia ser continuada. Parece provável, aliás, que uma das motivações iniciais para o arranque dos Descobrimentos terá sido a de contornar Marrocos por mar, pelo sul, para encontrar aliados cristãos que poderiam eventualmente constituir bons aliados para a guerra aos muçulmanos. Até á morte do Infante, em 1460, os Descobrimentos passariam por diversas vicissitudes, acabando por se tornar aos poucos um empreendimento mais importante do que os planos de conquista do Norte de África, sobretudo devido aos grandes lucros que o comércio veio a permitir. Durante muito tempo, porém, as viagens não proporcionaram qualquer rendimento, tendo o Infante e a Ordem de Cristo a ele associada suportado todas as pesadas despesas de preparação e abastecimento dos navios, assim como da condução viagens. Só lentamente, á medida que se avançava aos poucos para sul, é que se superaram os obstáculos naturais e se procedia á exploração económica.

O ritmo das viagens de descobrimento era sensível aos problemas políticos do reino, á maior ou menor vontade em prosseguir o esforço de exploração da costa africana e ampliar a colonização das Ilhas Atlânticas: a morte de D. Duarte, o projecto de conquista de Tânger em 1436, o conflito entre o regente D. Pedro e o futuro D. Afonso V, ou o interesse deste por Marrocos são exemplos de momentos em que as viagens sofreram um abrandamento ou mesmo uma paragem. Por outro lado, as próprias dificuldades naturais com que os navios deparavam provocavam atrasos, como os problemas de orientação no alto mar, os ventos contrários ou o desaparecimento da Estrela Polar a sul do Equador. Os Descobrimentos têm assim momentos de avanço, de que o melhor exemplo é o período da regência de D. Pedro, entre 1441 e 1448, e fases de estagnação e abrandamento.

Embora possamos hoje analisar as motivações económicas, sociais e ideológicas dos Descobrimentos do século XV, a verdade é que o seu arranque e impulso decisivo foram sobretudo uma questão de vontade e determinação de um homem, o Infante D. Henrique. Á data da sua morte, em 1460, o que não passara inicialmente de tímidas tentativas de navegação associadas á conquista de Marrocos era agora um empreendimento irreversível, bastante lucrativo e com boas perpectivas de ampliação. Os portugueses haviam até conseguido, por parte da Santa Sé, a salvaguarda da navegação para as terras descobertas, como forma de protecção contra outros países, sobretudo Castela, que se mostravam interessados em disputar o comércio africano.

Com a morte do Infante D. Henrique, os Descobrimentos sofrem um abrandamento: as viagens são arrendadas a um mercador, Fernão Gomes, que se compromete a avançar uma determinada distância por ano. É um período de exploração comercial intensa, mas onde não se vislumbra um rumo a tomar. Só em 1575 é que surge uma nova figura que, ao tomar sobre si a condução e orientação das viagens, transformaria os Descobrimentos numa verdadeira empresa nacional. Trata-se do príncipe, depois rei, D. João II. Os seus objectivos são claros: controle total da empresa africana pela Coroa, rentabilizando a sua exploração, e avanço rápido das viagens de exploração, de modo a contornar o continente africano e atingir o Oceano Índico. Assim, ao mesmo tempo que assegura o funcionamento de alguns entrepostos comerciais mais lucrativos, como a fortaleza da Mina, manda avançar rapidamente para Sul, alcançando a foz do Rio Zaire e, finalmente, em 1488, dobrando o Cabo da Boa Esperança.

Estamos, uma vez mais, perante um caso de vontade e determinação de um homem, desta vez ampliando e salvaguardando uma obra anterior. A acção de D. João II era, porém, de vistas largas: mais do que chegar á Índia, havia que garantir todo o caminho anterior, assegurando que só os navios portugueses comerciariam e navegariam no Atlântico Sul. Nesta época, a interferência castelhana na região era uma ameaça real, e os portugueses eram obrigados a patrulhar as águas africanas para evitar o contrabando. É verdade que as bulas papais concediam a Portugal a exclusividade de navegação e comércio na região, mas tal era insuficiente, havendo necessidade de negociar directamente com os reis espanhóis. Assim, em 1479 é assinado o Tratado de Alcáçovas-Toledo, que concede a Portugal a exclusividade de navegação e comércio a sul do Bojador, em troca das Canárias. O Tratado de Tordesilhas, que celebramos este ano o centenário, tratou-se de um segundo tratado, devido á viagem de Cristovão Colombo que havia provocado novo conflito entre os reinos ibéricos. Este dividiu definitivamente o mundo em duas partes, garantindo a Portugal o a navegação e comércio em África e o caminho aberto para a Índia. Só foi revogado dois séculos mais tarde, em 1750.

Os Descobrimentos Portugueses do século XV resultaram, assim, em boa parte do esforço das duas figuras que os conduziram, permitindo abrir o Mundo á Europa e transformar o pequeno país que era Portugal na maior potência naval do mundo, durante mais de um século.

Paulo Jorge de Sousa Pinto – texto de apoio a programas de rádio sob a designação “Era uma vez… Portugal”, emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

A RESTAURAÇÃO EM ANGOLA

Quando em Dezembro de 1640 um grupo de fidalgos portugueses assaltou o Palácio da Ribeira e proclamou o Duque de Bragança como rei de Portugal, estava despoletada o que mais tarde se chamou de Restauração da Independência, e que levou ao fim do domínio filipino em Portugal. Nos anos seguintes, o novo rei D. João IV tentaria inverter o declínio do império marítimo português, que desde há algum tempo se encontrava sob os ataques ingleses e holandeses, no Brasil, em África e na Índia. Vamos hoje falar do caso particular de Angola e dos graves problemas que aqui enfrentaram os portugueses nesta época.

Na manhã de 25 de Agosto de 1641, os habitantes de Luanda foram surpreendidos por uma desagradável surpresa. Uma armada holandesa que há alguns dias surgira à vista da cidade não prosseguiu para Sul nem se retirou, como alguns ainda esperavam. Pelo contrário, estava a desembarcar um forte contingente de cerca de três mil soldados, com evidentes intenções de conquistar a cidade. Este facto contrariava abertamente as expectativas criadas após a aclamação de D. João IV. Afinal, os holandeses eram inimigos declarados dos espanhóis, logo aliados naturais dos portugueses. A armada partira de Pernambuco, então ocupado pelos holandeses, e ali tinham já conhecimento da revolução ocorrida em Lisboa. Sabiam que os portugueses de Luanda já não eram súbditos de Filipe IV de Espanha, sendo, portanto, um golpe planeado e desleal.

Por esta altura, a situação das possessões portuguesas por todo o mundo era precária. Na Índia, os holandeses e ingleses disputavam o comércio português e atacavam os navios e fortalezas portuguesas, tendo já tomado Ormuz e Malaca. No Atlântico a situação era um pouco melhor, mas também grave. Os interesses portugueses concentravam-se na colonização do Brasil e na exploração dos seus recursos, nomeadamente a produção de açúcar. Angola era uma peça fundamental neste processo, pois era aqui que era adquirida a mão-de-obra para o trabalho nas plantações brasileiras. Os holandeses, após terem chegado ao Oriente, tentavam desde a década de 1620 competir directamente com os portugueses no Atlântico. Haviam tomado a Baía e Pernambuco na década seguinte, ameaçando a presença portuguesa no Brasil. Mas faltava-lhes uma posição forte em África, que lhes permitisse igualmente fornecer de mão-de-obra as suas plantações. Assim, e após algumas tentativas fracassadas, decidem-se pelo ataque frontal a Luanda, aproveitando o momento de fraqueza das forças portuguesas na região e ignorando ostensivamente as negociações de paz que então decorriam entre Portugal e a Holanda.

O desembarque holandês lançou o pânico no interior de Luanda. O governador Pedro César de Meneses não dispunha de forças suficientes para resistir eficazmente ao inimigo. Após hesitar entre a resistência desesperada e a retirada, decidiu-se por esta última solução. Ás duas horas da madrugada do dia seguinte, os portugueses abandonaram a cidade a caminho do interior, onde algumas fortalezas poderiam providenciar abrigo seguro. Iniciava-se assim o período de domínio holandês, em que os portugueses passariam crescentes dificuldades. O primeiro refúgio foi uma fazenda dos jesuítas, não longe de Luanda, mas os portugueses acabaram por se fixar um pouco mais longe, no meio de fazendas de portugueses, que eram o melhor local para obter protecção segura. Por esta altura, os holandeses temiam embrenhar-se no interior, por desconhecerem o meio, satisfazendo-se com a ocupação da cidade e com o estabelecimento de relações com diversos reinos vizinhos. Acreditavam que, afastados do mar e de Luanda, os portugueses acabariam por ficar isolados e por sucumbir. De facto, estes primeiros meses foram de enormes dificuldades para os portugueses. Á sua volta crescia a hostilidade dos chefes locais, que viam aqui uma boa oportunidade para escapar ao controle português e tentar obter condições de comércio mais vantajosas junto dos holandeses. Pedro César de Meneses foi obrigado a retirar-se para a fortaleza de Massangano, já no interior e a boa distância de Luanda, reorganizando aí os suas tropas e a resistência aos holandeses, ao mesmo tempo que esperava socorro de Portugal ou do Brasil.

Após vários meses de guerra, onde pontificava a turbulência permanente entre os diversos reinos africanos vizinhos, os portugueses foram surpreendidos por uma notícia inesperada, comunicada por emissários holandeses: havia sido assinado um tratado de paz entre Portugal e a Holanda, o que abria as portas às tréguas entre as duas partes. Assim, a 30 de Janeiro de 1643 foram assinadas as tréguas entre o governador português e os holandeses, permitindo aos portugueses regressar às proximidades de Luanda. Os holandeses, porém, ao que parece perturbados pelas riquezas dos colonos portugueses, romperam as pazes e atacaram abertamente as posições inimigas, o que obrigou a nova fuga para Massangano e a novo agravamento da situação.

Em Lisboa, D. João IV e os seus conselheiros tinham perfeita consciência das dificuldades que atravessavam os portugueses em Angola, mas dois factores distintos impediam de momento o socorro efectivo a Pedro César de Meneses e aos seus homens. Em primeiro lugar, Portugal estava em guerra aberta com os espanhóis, tendo sofrido diversas tentativas de invasão e enfrentando terríveis dificuldades financeiras para socorrer todos os locais em perigo. Depois, Portugal evitava desafiar abertamente a Holanda, com quem tinha assinado um tratado de paz e cuja ajuda era preciosa para poder enfrentar mais eficazmente os espanhóis. Era, assim, necessário resistir até que uma melhor conjuntura permitisse finalmente organizar uma expedição para reconquistar Luanda.

A situação política de Angola nesta altura era deveras complicada. Para além da presença portuguese e holandesa, havia evidentemente que contar com os reinos locais, que se dividiam nos seus apoios. Os portugueses enfrentavam dois inimigos principais: o reino do Congo e o reino de Matamba, onde reinava a célebre rainha Jinga. No entanto, estes nunca conseguiram promover uma aliança geral contra os portugueses. Pelo contrário, outros chefes aliaram-se imediatamente a favor destes, o que permitiu o fortalecimento da resistência portuguesa. O que aconteceu durante os anos seguintes foi que, por um lado, pequenas forças vindas do Brasil desembarcavam na costa angolana e prosseguiam até Massangano, abastecendo as tropas portuguesas e fortalecendo a resistência. Por outro, os holandeses enfrentavam igualmente terríveis problemas, desde a má adaptação ao clima a uma certa desilusão e desalento provocados pelas dificuldades crescentes e pelos parco sucesso económico da sua empresa.

A situação precária dos portugueses em Angola despertou no Brasil uma grande preocupação. Era opinião corrente a de que a perda de Angola acarretaria a médio prazo o descalabro do Brasil, quer em termos económicos quer militares. Assim, foi finalmente preparada uma grande expedição para retomar de vez o controle de Luanda e expulsar os holandeses. Para comandar tal empresa, foi escolhido Salvador Correia de Sá, nomeado governador de Angola. Partiu com uma forte armada de Lisboa em Novembro de 1647, rumo ao Rio de Janeiro, onde juntou novas forças, rumando então para Angola. Após algumas dificuldades iniciais, os portugueses conseguiram, algo inesperadamente, a rendição da guarnição holandesa de Luanda. que os portugueses recuperaram, assim, em Agosto de 1648. Assim terminou o período de domínio holandês nesta região, abrindo caminho ao fortalecimento da presença portuguesa que não mais voltou a ser ameaçada nos tempos mais próximos.

Paulo Jorge de Sousa Pinto – texto de apoio a programas de rádio sob a designação “Era uma vez… Portugal”, emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

A CONQUISTA PORTUGUESA DE MALACA NAS FONTES MALAIAS

Uma das conquistas mais importantes realizadas por Afonso de Albuquerque, o grande construtor do império marítimo português no Oriente, foi a de Malaca. A cidade era, a data da chegada dos portugueses, uma das mais importantes e ricas do Oriente, uma vez que dominava o comércio de longo curso que ligava o Extremo Oriente á Índia. A história da conquista portuguesa é já sobejamente conhecida: em 1509 chega a Malaca Diogo Lopes de Sequeira, com a missão de abrir ali uma feitoria e estabelecer um acordo de comércio. Porém, e apesar de terem sido inicialmente bem recebidos, os portugueses acabaram por ser atacados e muitos feitos prisioneiros, tendo Diogo Lopes de Sequeira conseguido fugir. Tal hostilidade deveu-se sobretudo ás intrigas da poderosa comunidade muçulmana da cidade, que conseguiu convencer o sultão a agir deste modo. O resto da história é bem conhecido: um pouco mais tarde, Afonso de Albuquerque vai pessoalmente pedir satisfações e resgatar os portugueses, e acaba por tomar a cidade. Não vamos descrever estes acontecimentos. Pelo contrário, vamos hoje falar um pouco sobre o que dizem as histórias malaias a tal respeito.

A conquista portuguesa de Malaca ficou registada em diversas crónicas malaias. Não se trata de descrições factuais, como nós o entendemos, mas sim histórias que passaram á tradição local, e que foram mais tarde passadas a escrito. É evidente que a sua versão do ocorrido é muito diferente da das fontes portuguesas. Os portugueses são geralmente chamados de “Francos”, nome que designava todos os cristãos europeus. Porém, no primeiro contacto, houve malaios que tomaram os portugueses por habitantes do Bengala, no norte da Índia. Eis um registo desse primeiro contacto, na crónica malaia mais importante, os “Anais Malaios”:

“Pouco depois chegou um navio dos Francos de Goa, a fazer comércio com Malaca; e os Francos perceberam como o porto era próspero e bem povoado. A gente de Malaca, por seu lado, acorreu em grande número a ver como eram os Francos. Todos ficaram espantados, e disseram: Estes são Bengalis brancos! Á volta de cada Franco juntou-se um aglomerado de malaios, alguns puxando a sua barba, outros tocando na sua cabeça, outros tirando o seu chapéu, outros ainda mexendo na sua mão. E o capitão do navio ancorou e apresentou-se ao Bendara Sri Maraja, que o adoptou como seu filho e lhe concedeu muitas honrarias, enquanto o capitão lhe deu uma corrente de ouro”.

É evidente que esta história não é o relato de alguém que tenha assitido a este facto, mas sim o que ficou na tradição malaia deste primeiro contacto. Esta mesma crónica descreve mais adiante a forma como os portugueses se apossaram da cidade: um primeiro ataque directo falhou, mas o vice-rei jurou vingança, e alguns anos depois toma a cidade com uma grande armada. A crónica descreve longamente este facto, relatando os feitos heróicos dos capitães malaios, destacando porém a superioridade militar portuguesa. Algo que terá causade grande impressão era a artilharia portuguesa, como no passo seguinte:

“Ao chegar a Malaca os navios abriram fogo com os seus canhões. E a gente de Malaca ficou assustada e cheia de medo com o som do canhão, e disseram: “Que som é este, como um trovão?”. E quando as balas de canhão atingiram a gente de Malaca, de modo que alguns tiveram as suas cabeças arrancadas, alguns, os seus braços, e outros, as suas pernas, a gente de Malaca ficou cada vez mais espantada ao ver que espécie de artilharia era esta, e disseram: “O que será esta arma redonda, que no entanto é suficientemente afiada para nos matar?”

Apesar de bem diferente da versão portuguesa dos acontecimentos, estes “anais malaios” não deixam, porém, de ser em muitos pontos coincidentes com o que dizem as fontes portuguesas, nomeadamente a distinção entre a primeira viagem de Diogo Lopes de Sequeira e a posterior expedição militar, comandada pelo vice-rei, a que a crónica chama inclusivamente “Fongso de Albuquerque”. Há, porém, outras crónicas malaias que mancionam igualmente os portugueses. Uma há que relata toda a história do domínio português de Malaca, desde a conquista até á tomada da cidade pelos holandeses. É, porém, bem mais romanceada. Aqui se relata como os portugueses tomaram a cidade á traição, seduzindo os malaios com ouro para ganhar a sua confiança:

“Eis uma história dos tempos de outrora: os Frangues chegam à terra de Malaca. Chega então o capitão do navio a traficar, com vários outros capitães de navios, e trazem a el-Rei Sultão Ahmed Xá um presente de ouro, reais, roupas e cadeias de Manila; e fica o Sultão assaz contente com o capitão português. E assim, ao cabo de pouco tempo, quanto fosse desejo dos capitães, tudo era satisfeito pelo Sultão Ahmed Xá. Vários foram os ministros que observaram respeitosamente:

-Não seja a Alteza de Meu Senhor demasiado confiante para com essa gente branca, pois na modesta opinião de todos os vossos velhos servidores não é bom proteger o Meu Senhor a estes recém-chegados.

Então o Sultão Ahmed Xá falou:

-Meu tio bendara, e nobres tomungões, não vejo como possa esta gente branca provocar a perdição de nossa terra!

Eis então que os capitães dos navios começaram a dar cadeias de ouro de Manila aos vários notáveis do país de Malaca. E todos os nativos do país de Malaca quedam assaz agradados dos capitães dos navios portugueses.”

Seguidamente, descreve o estratagema usado pelos portugueses para tomar a cidade: aproveitaram a boa vontade do sultão para construír uma fortaleza, e depois usaram-na para atacar Malaca.

“Então de novo falou o Sultão Ahmed Xá ao capitão português:

-Que mais ainda desejam de nós estes nossos amigos, que tão belo presente nos trazem?

Disseram-lhe então os capitães todos dos navios:

-Nós desejaríamos pedir uma só coisa ao nosso bom amigo; isto se o nosso bom amigo deseja manter amizade connosco, gente branca.

E assim lhes respondeu o Sultão Ahmed Xá:

-Dizei-o pois, podemos escutar! Se é coisa que tenhamos, sem dúvida satisfaremos o desejo de nossos amigos!

Disseram então os capitães dos navios:

-Nós desejaríamos pedir um naco de terra, tamanho como uma pele de animal seca.

E el-Rei falou:

-Não se contristem os nosso amigos: tomai a terra que vos aprouver; se é de tal tamanho, possuí a terra.

Então o capitão português ficou assaz contente. E logo descem os portugueses a terra, trazendo enxadas de cavar, tijolos e cal. E vão buscar a tal pele, fazem dela uma corda, e com ela medem um quadrado. E fazem uma edificação grande em extremo, fortificada, e fazem ao mesmo tempo aberturas para canhões. E toda a gente de Malaca inquiria:

-Mas que aberturas são essas?

E respondiam os Portugueses:

-Isto são aberturas que a gente branca usa como janelas.

E eis qual foi o procedimento dos Portugueses: de noite, descarregaram bombardas de seus navios, e espingardas metidas em caixas, dizendo que havia roupas dentro delas: tal foi o procedimento dos Portugueses para iludir a gente de Malaca. Então, passado tempo, a casa de pedra ficou concluída e todas as suas armas prontas. E mais ou menos à meia-noite, quando a gente toda dormia, eis que os Francos bomberdeiam a cidade de Malaca. Depois disto, sob o bombardeamento dos Francos, à hora da meia-noite, eis que el-Rei Ahmed Xá com todo o povo fogem sem saber para onde, sem terem ocasião de resistir. E os Francos apossam-se de Malaca.”

Paulo Jorge de Sousa Pinto – texto de apoio a programas de rádio sob a designação “Era uma vez… Portugal”, emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

O QUOTIDIANO DE UM SOLDADO PORTUGUÊS NA ÍNDIA

No século XVI, a maior parte dos portugueses que partia de Lisboa em direcção à Índia faziam-no como soldados, procurando nas longínquas paragens do Oriente uma forma de enriquecer, escapando assim à miséria em que viviam em Portugal. Como viviam estes homens, e como era o seu dia-a-dia nesta empresa tão perigosa como irresistível, como era a busca da fortuna? É sobre este tema que nos vamos debruçar hoje, começando por tratar de uma questão fundamental: se os Descobrimentos Portugueses foram uma empresa essencialmente comercial e pacífica, como foi possível que a guerra desempenhasse no Oriente um papel tão importante, cabendo aos soldados uma função de primeiro plano?

Nas palavras de um homem da armada de Vasco da Gama, os portugueses chegaram á Índia em busca de “cristãos e especiaria”. Estas eram, de facto, as duas motivações mais importantes, desde que o rei D. João II traçara o seu plano de alcançar o continente asiático por via marítima: encontrar as comunidades cristãs, que se supunham muito numerosas, da Índia, de forma a estabelecer uma aliança contra o Mundo Muçulmano, e localizar as fontes das ricas especiarias orientais, nomeadamente a pimenta, obtendo assim grandes lucros com o seu transporte para a Europa. Tudo isto seria feito mediante contactos pacíficos e tratados comerciais, como já havia ocorrido na costa ocidental africana.

No entanto, quer os homens da armada de Vasco da Gama, quer o próprio rei D. Manuel I estavam redondamente enganados, como cedo viriam a descobrir. Em primeiro lugar, a Índia não era povoada de cristãos, mas antes de hindus, não existindo assim qualquer tipo de comunhão religiosa. Mas o mais importante é que os portugueses encontraram nos mares do Oriente os seus velhos inimigos, os muçulmanos. Estes, para além de numerosos, eram também muito poderosos e influentes, controlando precisamente o que mais interessava aos portugueses na costa ocidental indiana: o comércio marítimo das especiarias. Assim, os portugueses cedo compreenderam que o mundo do Oceano Índico era bem mais hostil do que pensavam inicialmente.

É que, ao contrário do Atlântico, o Índico não era um oceano “virgem”: o comércio marítimo estava já estabelecido por um conjunto de comunidades mercantis, sendo as muçulmanas as mais poderosas. Como cedo viriam a descobrir, os portugueses enfrentaram uma competição feroz por parte destas últimas, que não viam com bons olhos a chegada destes estrangeiros. Para procurarem um lugar no seio do comércio asiático e garantirem a sua própria segurança, os portugueses teriam assim que recorrer à força militar. Foi logo na segunda viagem, a de Pedro Álvares Cabral, que esta questão se tornou evidente. A partir deste momento, e à medida que se construíam os alicerces do que viria a ser o Estado da Índia, foi necessário o envio constante de navios, artilharia e soldados, de forma a proteger o comércio e os pontos de fixação portugueses, que se estenderam de Moçambique a Malaca, e daqui à China e ao Japão.

A vida de um soldado português na Índia não era fácil. O primeiro grande obstáculo a enfrentar era a própria viagem para a Índia, longa, difícil e geralmente sujeita a todo o tipo de adversidades. Chegado a Goa, o soldado colocava-se ao serviço do vice-rei ou de outra figura poderosa e influente, que lhe garantia o sustento enquanto não embarcasse para servir numa armada ou numa fortaleza, como geralmente ocorria. É claro que trazer uma carta de recomendação do reino, por parte de alguém importante, podia ser uma ajuda preciosa para o início da sua carreira. É que as tropas portuguesas não estavam organizadas em corpos de exército disciplinadas (como acontece hoje em dia), com uma hierarquia, um salário e uma residência fixa para os soldados.

Deste modo, o soldado recém-chegado à Índia tinha muitas vezes que procurar os seus próprios meios de subsistência, estando geralmente dependente de quem o sustentava. O melhor caminho a seguir era embarcar numa das armadas que regularmente partiam para as diversas fortalezas que os portugueses detinham por todo o Índico, podendo a partir daí, consoante as oportunidades, a relação estabelecida com os capitães e o seu próprio desempenho, auferir rendimentos que lhe permitissem melhorar a sua condição, ou mesmo, e em casos excepcionais, enriquecer.

A vida de um soldado no Oriente era difícil e perigosa. As armadas e fortalezas portuguesas estavam frequentemente sujeitas á hostilidade de reis vizinhos, de piratas ou corsários. A uma vitória militar, que geralmente proporcionava aos simples soldados uma parte dos despojos e do saque, podia-se seguir um desaire, um naufrágio ou um ataque inimigo que deitasse tudo a perder. Os soldados eram mal pagos, vendo-se muitas vezes obrigados a vender as suas armas para poder sobreviver, quando a sorte não lhes era favorável. A dureza e ingratidão da vida nas fortalezas e armadas portuguesas levava a que muitos soldados procurassem um modo alternativo de vida, procurando aproveitar as oportunidades que o seu valor e os seus conhecimentos podiam proporcionar. Muitos acabavam por se envolver directamente em actividades comerciais, certamente muito mais rendosas do que a simples vida soldadesca

Existia uma via mais radical. Muitos portugueses, ao longo dos séculos XVI e XVII, deixavam pura e simplesmente o serviço a que estavam obrigados e fugiam para fora da alçada das autoridades portuguesas, embrenhando-se na vastidão do espaço asiático. Tal podia ocorrer por simples desejo de aventura e de busca da fortuna, por fuga à justiça ou por qualquer outro motivo. Alguns portugueses chegaram mesmo a abjurar a sua religião e a converter-se ao Islão, passando então a designar-se por “renegados”. Esta gente seguia então uma vida aventurosa, como piratas ou soldados da fortuna, servindo muitas vezes como mercenários em exércitos locais, até mesmo de reis inimigos dos portugueses. Eram muito cobiçados, pois tinham conhecimentos de armas de fogo ligeiras e de artilharia que eram procuradas pelos reis asiáticos. Havia assim, uma miragem da riqueza e da promoção social subjacente a este tipo de vida. Para um soldado faminto e mal pago numa fortaleza, compreende-se que a fuga fosse uma tentação a que era difícil resistir. O Golfo do Bengala e os mares da China eram as áreas mais propícias à actividades de tais homens, já que o poderio das armadas portuguesas era aqui mais débil, e o número de fortalezas, diminuto. Não raras vezes, estes homens acabavam, mais cedo ou mais tarde, por voltar a contactar as autoridades portuguesas, oferecendo possibilidades de conquista ou de comércio à Coroa, ou simplesmente mostrando vontade de regressar para junto dos seus, por vezes para Portugal.

A vida de Fernão Mendes Pinto ilustra bem as peripécias, as glórias e as dificuldades por que passavam os portugueses no Oriente. Tal como aconteceu consigo, os soldados conseguiam muitas vezes regressar a Portugal, solicitando então ao rei uma recompensa pelos serviços prestados, que era geralmente uma pequena quantia, claramente insuficiente para cobrir toda uma vida de trabalhos, perigos e dificuldades por que passaram.

Paulo Jorge de Sousa Pinto – texto de apoio a programas de rádio sob a designação “Era uma vez… Portugal”, emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

OS PORTUGUESES NO TECTO DO MUNDO

É por todos bem conhecida a primazia portuguesa na descoberta do Mundo, colocando em contacto culturas e civilizações anteriormente isoladas. No que toca ao continente asiático, os portugueses fizeram a primeira ligação marítima entre a Europa e a Índia, seguindo-se depois o Golfo de Bengala, a Insulíndia e finalmente o Extremo Oriente, a China e o Japão. No entanto, tudo isto se refere a viagens e rotas marítimas. O vastíssimo interior do continente asiático permanecia na sua maior parte isolado. Vamos hoje falar do papel fundamental desempenhado por alguns portugueses no descobrimento das mais remotas regiões deste continente, nomeadamente os Himalaias, o Tibete e o interior da China.

O continente asiático despertara desde há muito a curiosidade dos europeus, pelo seu carácter longínquo e misterioso. Porém, as informações que circulavam na Europa durante a Idade Média eram escassas e confusas. O principal nome sob o qual a China era conhecida nessa altura era o de Cataio, que o célebre viajante Marco Polo celebrizou. Este veneziano descreveu o Cataio como um poderoso reino do Extemo Oriente, governado pelo Grão Cã, tendo o relato da sua viagem conhecido uma grande divulgação por toda a Europa, inclusivamente em Espanha e em Portugal. Havia, aliás, outras informações que identificavam este rico e grandioso reino asiático com o mítico Prestes João, um poderoso reino cristão que se acreditava existir algures no Oriente, e que seria um valoroso aliado dos cristãos na luta contra o Mundo Muçulmano. A origem desta confusão parece estar relacionada com a existência de algumas tribos cristãs na Ásia Central, cuja importância e dimensão terão sido enormemente exageradas. Aliás, parece que o nome de “Cataio” terá derivado do nome de uma destas tribos cristãs, os Kithai.

Na Europa, havia quem desconfiasse destas informações, mas igualmente quem nelas acreditasse sem reticências. Cristóvão Colombo, por exemplo, empreendeu a sua famosa viagem de descobrimento em busca do Cataio e do Cipango, ou seja, do Japão, julgando tê-los encontrado quando desembarcou nas Antilhas. Os portugueses, pelo contrário, nunca deram grande crédito a tais expectativas e informações. Para D. João II e os seus homens, o Preste João localizava-se não na Ásia mas sim na Etiópia, e o objectivo a atingir pelos seus navios era a verdadeira Índia, através de um esforço prático de navegação e não de qualquer nebulosa tradição medieval.

A viagem de Vasco da Gama permitiu a criação de uma via de comunicação entre a Europa e a Índia. Nos anos seguintes, e à medida que se fixavam por estas paragens, os portugueses prosseguiam o seu avanço para Leste. A conquista de Malaca em 1511 abriu-lhes as portas do Extremo Oriente, e foi aqui que obtiveram informações concretas sobre a China, onde chegaram algum tempo depois. Aliás, o nome “China” foi adoptado pelos portugueses por via da língua malaia, passando depois para a maior parte das línguas europeias. Ao longo do século XVI, os portugueses passaram a frequentar a costa chinesa, fundando Macau, e estabelecendo-se igualmente no Japão. A presença portuguesa era quase exclusivamente comercial, e marcada pelo seu carácter marítimo: o que os portugueses conheciam era uma parte da costa, os portos, os marinheiros e os mercadores chineses. Logo, as informações que chegavam a Lisboa diziam respeito à faceta marítima da China.

Deste modo, ao longo de todo o século XVI, circulavam pela Europa duas fontes paralelas referentes à China: uma tradicional, medieval, obtida por via continental e terrestre, que falava do reino do Cataio; e uma moderna e marítima, que descrevia as costas chinesas, trazida por quem conhecia a China por mar. A fusão entre estas duas facetas só foi feita muito tardiamente. Só no século XVII é que se concluiu que a China e o Cataio eram um único país. Até lá, discutiu-se sobre a relação entre estas duas entidades: uns diziam ser o Cataio um reino independente da China; outros, que se tratava de uma província da mesma.

O esforço decisivo para se acabar de vez com estas dúvidas foi empreendido pelos Jesuítas, já nos finais do século XVI. É que a velha ideia da possível existência de um poderoso reino cristão na Ásia não havia sido esquecida, pelo que tal tinha que ser definitivamente tirado a limpo.

O europeu que pela primeira vez fez a viagem da Índia para a China por terra era português, e chamava-se Bento de Góis. Natural de Vila Franca do Campo, em S. Miguel, era jesuíta e iniciou a sua jornada em 1602. Falava persa e viajou disfarçado de muçulmano, de modo a melhor passar despercebido. A sua viagem durou vários anos, até que atingiu finalmente Socheu, junto à célebre Muralha da China. A ele se deveu, pela primeira vez, a prova definitiva de que o Cataio e a China eram o mesmo reino. Faleceu pouco depois, devido aos rigores e dificuldades que sofreu ao longo da sua jornada. As informações que recolheu sobre esta questão foram transmitidas a outros elementos da sua Ordem, que assim as divulgaram.

Para o conhecimento geográfico, esta viagem revestiu-se da maior importância, pois permitiu pela primeira vez juntar as duas tradições e acabar de vez com o debate sobre o mítico Cataio. Para a Companhia de Jesus, porém, as notícias não foram as melhores, pois Bento de Góis não deu sinais da existência de cristãos, cuja existência era já duvidosa. No entanto, o esforço para os encontrar não esmoreceu. Pelo contrário, foi dirigido noutro sentido, num reino remoto, para lá dos Himalaias: o Tibete.

Tal tarefa foi entregue e levada a bom termo pelo jesuíta português António de Andrade, natural da vila de Oleiros, que em 1624 parte de Agra a caminho dos Himalaias. A viagem foi marcada pelas terríveis condições do clima, pela dificuldade dos caminhos e sobretudo pelo frio intenso, como descreve numa das suas cartas:

“O trabalho que passámos foi muito excessivo, porque nos acontecia muitas vezes ficar encravados na neve, ora até aos ombros, ora até aos peitos, de ordinário até aos joelhos. Nos pés, mãos e rosto não tínhamos sentimentos, porque com o demasiado rigor do frio ficávamos totalmente sem sentido; aconteceu-me, pegando em não sei quê, cair-me um bom pedaço do dedo sem eu dar fé disso, sem sentir ferida, se não fora o muito sangue que dela corria. Os pés foram apodrecendo, de maneira que, de muito inchados, no-los queimavam depois com brasas vivas e ferros abrasados e com muito pouco sentimento nosso”.

Chegou finalmente ao Tibete, tendo aí regressado no ano seguinte e convertido o rei local ao Cristianismo, o que considerou ser uma grande vitória missionária. Curiosamente, chamou ao Tibete o “Grão-Cataio”, o que prova como as informações de Bento de Góis ainda não haviam sido plenamente aceites, tendo ainda decorrido algum tempo até se tornarem conhecimento geral.

Paulo Jorge de Sousa Pinto – texto de apoio a programas de rádio sob a designação “Era uma vez… Portugal”, emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

A CONCORRÊNCIA LUSO-HOLANDESA NO SÉCULO XVII

Ao longo da sua História, Portugal desenvolveu um conjunto de laços e ligações particulares com alguns países da Europa. É sobejamente conhecida a relação conturbada com Espanha, desde mesmo os primórdios da fundação da nacionalidade. É igualmente conhecida a antiga aliança com a Inglaterra, velha de 600 anos, que juntava os interesses comuns dos dois países predominantemente marítimos. Mas hoje vamos abordar um caso igualmente significativo, mas menos conhecido. Referimo-nos ao caso da Holanda, ou mais correctamente aos Países Baixos, cujas ligações a Portugal remontam aos primeiros tempos da nossa História. Vamos tratar, em concreto, de um período de cerca de 60 anos em que, contrariando a longa tradição de amizade, portugueses e holandeses foram acérrimos inimigos, no que ficou para a História como o primeiro grande conflito à escala planetária.

Quem tomar o relacionamento entre Portugal e a Holanda entre a Idade Média e o século XVI, encara certamente com estranheza – para não dizer espanto – o período de concorrência entre os dois povos inaugurado nos finais daquele século. A ligação tradicional e a amizade entre os dois países tinha raízes profundas. Sendo ambas potências marítimas, uma na encruzilhada de África com a Europa, do Mediterrâneo com o Atlântico, e a outra no cruzamento do Mar do Norte com a Europa Central, desde o século XII que desenvolviam um intenso comércio mutuamente proveitoso. Com o arranque dos Descobrimentos Portugueses, tal passou a ser ainda mais vincado, pois a Holanda funcionava como centro distribuidor dos produtos africanos, brasileiros e asiáticos para a Europa, a partir de Lisboa. Os interesses dos dois países, que no século XVI eram assim complementares, passaram a partir de determinada altura a divergir. Tal ocorreu na verdade a partir da década de 1580.

A partir da década de 1580, Portugal passa a ter como rei Filipe II de Castela, que após um breve período conturbado conseguira tomar o trono português. Assim, a partir desta data, Portugal e Espanha passam a ter um destino comum. Ao mesmo tempo que Portugal se une á Espanha, os holandeses seguem o caminho oposto: tendo estado sob domínio espanhol, desencadeiam a certa altura uma revolta, proclamando a independência. Assim, deste modo, Portugal e Países Baixos encontram-se, na década de 1580, súbita e inesperadamente em campos opostos. Tal não significava necessariamente inimizade declarada. Em princípio, a rebelião das Províncias Unidas era um problema que a Coroa de Castela teria que enfrentar e a que os portugueses eram alheios, pelo que o comércio entre os portos portugueses e os flamengos se manteve intenso. Porém, o que viria a acontecer foi que o rei espanhol, embora tivesse jurado nas Cortes de Tomar que a política externa portuguesa manteria a sua autonomia, passou a conduzi-la segundo os interesses espanhóis. Na prática, o que aconteceu foi que os inimigos de Espanha passaram a ser igualmente inimigos de Portugal: entre os mais importantes contavam-se a Inglaterra e a Holanda, dois aliados tradicionais de Portugal. O rastilho do conflito foi aceso em 1595, ano em que Filipe II encerrou de vez os portos portugueses à navegação holandesa e confiscou os bens dos navios que se encontravam na barra de Lisboa. Os holandeses viram-se assim definitivamente privados do acesso às mercadorias ultramarinas, sobretudo orientais. Nesse mesmo ano enviariam a sua primeira expedição ao Oriente, abrindo assim o caminho a um período de concorrência e hostilidade entre os dois países.

A primeira viagem holandesa ao Oriente não se pode considerar propriamente um sucesso, devido às terríveis baixas, à desorientação da tripulação e à precaridade do seu percurso, pois só regressaria aos Países Baixos três anos mais tarde, mas abriu caminho a outras expedições e à decisiva penetração holandesa na Ásia, o que veio de facto a ocorrer rapidamente. Inicialmente pacíficas e meramente comerciais, as navegações holandesas tornaram-se gradualmente mais exigentes, tanto mais que os portugueses cedo passaram a combater os intrusos por todos os meios ao seu alcance. Passou-se assim rapidamente a um estado de guerra não-declarada. Os holandeses, considerando que os portugueses não tinham o direito de lhes vedar o acesso á Índia e ás especiarias orientais, passaram a atacar indiscriminadamente as posições portuguesas, tanto as armadas como as fortalezas, conseguindo alcançar importantes vitórias. Na verdade, o Estado da Índia português, minado por diversas dificuldades (que iam desde a corrupção generalizada do sistema ao atrofiamento da sua estrutura organizativa), estava militarmente incapacitado de responder eficazmente a tal concorrência. Os portugueses, dispersos por um império que se estendia do Brasil ao Japão e com recursos humanos, financeiros e políticos limitados, não podiam competir com uma potência europeia melhor armada, financiada e organizada, tanto mais que outras potências passaram a entrar igualmente na corrida, ingleses, franceses e até dinamarqueses.

As primeiras viagens holandesas foram pacíficas e cautelosas. Só gradualmente, à medida que os portugueses reagiam com dureza crescente, é que o procedimento se modificou. É preciso ver que, aos olhos das autoridades portuguesas, os holandeses eram piratas e considerados rebeldes e ainda por cima de religião protestante. Estava assim aberto o caminho á competição desenfreada e á guerra total, que alastrou do Oriente para o continente americano. Também aqui os holandeses atacaram as possessões portuguesas, nomeadamente no norte do Brasil. O ritmo deste conflito prosseguiu de forma crescente até á década de 1630. É sabido que o assalto holandês generalizado ás posições ultramarinas portuguesas e a indiferença com que os reis espanhóis encaravam a questão foram uma das motivações que levaram á revolta e á Restauração da independência. A partir de 1640, Portugal encontra-se novamente em boas relações com a Holanda, como aliás com outras potências inimigas de Espanha, como a Inglaterra.

A Restauração portuguesa, em Dezembro de 1640, deveria em princípio ter posto fim à pressão holandesa sobre os portugueses: estes já não eram súbditos do rei espanhol, mas sim de um novo rei que rapidamente procuraria o apoio holandês para a sua causa, retomando a velha relação de amizade entretanto interrompida. Acontece que os holandeses estavam muito pouco receptivos a aceitar tal argumento, tanto mais que a sua posição de vantagem lhes permitia antever novas vitórias perante o enfraquecido poder português; o assalto prosseguiu, portanto, quer no Oriente, quer no Atlântico. Só em 1669, é que a paz foi assinada, pelo Tratado de Haia. As relações luso-holandesas foram finalmente normalizadas, retomando a tradição de amizade e complementariedade económica – agora sob outros moldes – que fizera a sua História até à década de 1580.

Paulo Jorge de Sousa Pinto – texto de apoio a programas de rádio sob a designação “Era uma vez… Portugal”, emitidos entre 1993 e 1996 pela RDP-Internacional, em associação com a Sociedade Histórica da Independência de Portugal

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