O Índio do Brasil na Literatura


Temos, portanto, dentro da corrente tradicional, várias posições que importa distinguir. Num primeiro grupo incluiremos todos aqueles que nos apresentam os Índios com qualidades e defeitos, embora diferentes dos Europeus.

É nesta primeira categoria que se integra a quase totalidade das obras que estudámos. A ela pertencem os historiadores, viajantes e exploradores dos séculos XVI a XVIII, os colonizadores (Jesuítas), Nuno Marques Pereira, os Índios de Basílio da Gama, excepto Lindóia, os de Santa Rita Durão, excepto Paraguassú e em parte, Gupeva, os de Tenreiro Aranha, Rocha Pita, Domingos do Loreto Couto, Ribeiro de Sampaio, Joaquim José Lisboa, Frei Francisco de S. Carlos, Cavaleiro de Oliveira, e, em parte, Cruz e Silva.

No entanto, mesmo no conjunto de todos estes autores, há uma certa evolução na forma por que se tratam o Índio.

Os viajantes e exploradores viam-no como um ser curioso, de que importava sobretudo descrever as singularidades de costumes. Com os colonizadores nota-se já uma mudança – o Índio passa a interessar em si mesmo, como pessoa humana capaz de um comportamento moral, devido ao maior contacto que os colonizadores com ele tinham. Há, assim, um progresso nítido.

Em seguida o Índio entra na literatura propriamente dita, onde é visto e descrito quer mais quer menos favoravelmente, ora sob uma forma um tanto exterior, ora com mais profundidade.

Existe aqui também uma nova transição, e de grande importância, a marcar. Com Basílio da Gama, os Índios ganham personalidade. Continuam a ser bons e maus – mas com a diferença de que, enquanto em todos os outros escritores eram atribuídos defeitos e qualidades ao Índio em geral, encontramos neste os dois aspectos dissociados – Índios bons e Índios maus, como em qualquer obra podemos encontrar personagens boas e más.

[…]

Numa outra alínea poderíamos incluir aqueles que se apresentam como verdadeiros Europeus. Tais são Lindóia, de O Uraguai de Basílio da Gama, Paraguassú, do Caramurú de Santa Rita Durão, e Guaçu, do mesmo poema.

A europeização da primeira é ainda bastante leve. Com Paraguassú vai-se já mais longe. Quanto a Lindóia, nada tinha havido que contrariasse expressamente as características físicas da raça a que pertencia, mas aquela é já descrita como possuindo tez branca e olhos claros. Além disso, Lindóia aparece apenas actuando mas não raciocinando sobre questões filosóficas. Paraguassú conversa com Diogo Álvares Correia por tal forma que seria impossível numa Índia ainda inculta e afastada de qualquer civilização, como era quando Diogo Álvares a conheceu.

[…]

Ainda dentro da corrente tradicional, temos a contar com um terceiro grupo – aqueles que, referindo-se ao Índio, apenas se interessam por ele na medida em que lhes serve para a exaltação da acção civilizadora e cristianizadora dos Portugueses. Não interessam os costumes, nem saber se são verdadeiramente homens, se são bons ou maus, se melhores ou piores que os Europeus. Interessa apenas dizer que são selvagens, bárbaros, pondo em relevo o esforço dispendido e a vitória conseguida. É esta a posição de Cláudio Manuel da Costa no seu poema Vila-Rica, de Alvarenga Peixoto em O Sonho, ao descrever-nos um Índio que, representando todo o Brasil, é o primeiro a louvar e a agradecer a civilização que lhe foi trazida, confessando-se leal súbdito dos monarcas portugueses, e ainda de José Bonifácio de Andrade e Silva, que, nos seus já citados Apontamentos para a civilização dos Índios bravos do Império do Brasil, faz a apologia da acção desenvolvida. Em todos eles o Índio está praticamente ausente e é quase um pretexto.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 107 a 109

«Bento Teixeira, ou Bento Teixeira Pinto, nascido em meados do século XVI, em Pernambuco, tem a honra de ser, cronologicamente, o primeiro poeta brasileiro, ou filho do Brasil», diz Afrânio Peixoto na sua Introdução à Prosopopeia deste mesmo Autor.

Assim é, de facto. E, como tal, era de esperar que se ocupasse da região em que nasceu. Mas, se por um lado celebra incansavelmente a beleza da sua terra, é também incansavelmente que louva a acção portuguesa no Brasil – e o Índio apenas aparece na sua obra como pano de fundo, em oposição maciça a esta mesma acção, despertando interesse somente na medida em que por ela se vai deixando ganhar.

Sendo, como é, a Prosopopeia dirigida a Jorge de Albuquerque Coelho, capitão e Governador de Pernambuco, era inevitável que nela se elogiasse a acção civilizadora dos portugueses, mas isso de forma alguma impedia um certo interesse pelo Índio.

Pouco posteriores à Prosopopeia, e de muito maior importância para nós, são os Diálogos das Grandezas do Brasil, em número de seis. Foram pela primeira vez reunidos e publicados em volume em 1930, devido aos cuidados de Capristano de Abreu, embora a sua composição date, segundo informa o mesmo Autor, de 1618.

Não se sabe quem é o seu Autor. Tem-se procurado levantar o anonimato através do estudo do texto, mas nem sequer se chegou ainda à conclusão de ter ele nascido ou não no Brasil. Não nos interessa aqui discutir o problema; limitar-nos-emos ao estudo do texto propriamente dito.

Temos, em todos os diálogos, sempre as mesmas duas personagens: Alviano e Brandónio.

Representa um o metropolitano recém-chegado do reino e ainda muito afastado dos problemas dos indígenas e o segundo o colonizador que já se encontrava no Brasil há bastante tempo.

[…]

Quanto ao objectivo destas composições, trata-se, como o próprio nome indica, de dar a conhecer o Brasil pelo que ele tem de melhor.

Na primeira ocupam-se os dois dialogantes em descrever as várias Capitanias do Brasil, ao que se segue (segundo diálogo) uma comparação entre Negros e Índios, louvando-se simultaneamente as condições do clima e discutindo-se a origem do Índio Americano. Vem em seguida (terceiro e quarto diálogos) a enumeração das riquezas do Brasil, com especiais referências ao pau-brasil, ao algodão e aos produtos agrícolas. No quinto, faz-se a descrição dos animais, da terra e, por fim, o sexto, aquele que mais directamente nos interessa, ocupa-se dos Índios, depois de rápidas notações sobre os costumes dos Portugueses.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 57 e 58

Falámos até aqui de obras que foram escritas a partir de um contacto directo, embora mais ou menos prolongado, com o Índio do Brasil. Mas teriam estes escritos despertado profundo interesse na Metrópole? É para duvidar que assim tenha acontecido.

A leitura dessas narrações despertaria certamente curiosidade. Mas, acima de tudo isso, havia um facto que, desde o início do século XVI, vinha monopolizando todas as atenções – o descobrimento do caminho marítimo para a Índia, que exercia um poder fascinante sobre as mentalidades do século. Como já vimos, o próprio prestígio de que a América gozou foi em parte motivado pela confusão que se estabeleceu entre ela e a Índia.

De qualquer forma, aos Portugueses interessava muito mais o caminho que eles próprios tinham descoberto; e, quando o engano de Colombo se desfez, maior realce essa descoberta ganhou ainda.

Percorrendo a historiografia portuguesa dos séculos XVI e XVII, damo-nos bem conta deste predomínio da Índia sobre o Brasil.

Além daqueles que com este tiveram contacto directo, e de que já nos ocupámos, as referências que a ele se fazem são poucas e rápidas, existindo apenas uma obra que se ocupa exclusivamente do Brasil, enquanto os tratados sobre a Índia abundam.

Essa obra que trata do Brasil é a Nova Lusitania, história da guerra brasílica de Francisco de Brito Freire.

Nela se ocupa o Autor dos esforços empregados e das lutas travadas para conseguir conservar e civilizar o Brasil, fazendo também referências aos seus habitantes: 

«Inclinados a tomarem por molheres suas cunhadas. Cobardes. Sopresticiosos. Amigos de se lavar nos rios. Chamando tambem Parascé, com pouca corrupção de Parasceve, a aquelle modo barbaro, das suas festas mais solenes».

Refere-se ainda a outros costumes, tantas vezes descritos pelos viajantes, como os de andarem nus, furarem os beiços, comerem carne humana – e, embora as descrições sejam bastante breves, são as mais extensas que se encontram entre os historiadores.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, p. 55

Um outro Jesuíta que, um pouco posteriormente, se ocupou do Brasil, foi o Padre Fernão Cardim, terceiro Provincial da Companhia nessa região. É Autor de três tratados, Do Clima e terra do Brasil e de algumas cousas notaveis que se achão assi na terra como no mar, Do Principio e Origem dos Indios do Brasil e Narrativa Epistolar, posteriormente reunidos num só volume, Tratados da terra e gente do Brasil. […]

As que para nós têm mais interesse são esta e a Narrativa Epistolar.

Apesar dos seus tão falados costumes de matar os contrários e comer carne humana, os Índios aparecem nestas obras a uma luz bastante favorável. Em primeiro lugar é elogiada a sua liberalidade […]

Posição já muito diferente quanto aos Índios tem o Padre Simão de Vasconcelos. Refere-se aos mesmos factos que Cardim, mas dá maior relevo aos desfavoráveis. Se reconhece que «são liberaes, engenhosos, magnanimos, e davidosos», também diz que «vivem a maneira de feras selvagens montanhesas; nem seguem fé, nem lei, nem rei, pela qual razão faltam na sua lingua F. L. R.».

[…]

Importa agora salientar que os testemunhos destas figuras principais que apontamos não se encontram isolados, mas sim enquadrados num conjunto. Há dezenas de outros Jesuítas que, trabalhando no Brasil e escrevendo para a Europa, nos deixaram indicações que vêm confirmar o que Nóbrega, Anchieta, Cardim e Simão de Vasconcelos disseram. Essas cartas, assim como algumas destes Autores que citámos, publicadas em várias colectâneas como Cartas Jesuíticas, Novas Cartas Jesuíticas e Cartas Avulsas, foram agora reunidas numa só obra, Monumenta Brasiliae, por Serafim Leite, S. J..

As referências destas cartas aos Índios do Brasil são pouco extensas.

Mostram-se uns Autores desfavoráveis aos indígenas, outros favoráveis, mas nada acrescentam ao que disseram aqueles cujas obras analisámos. Têm, no entanto, o interesse de, em conjunto, confirmarem toralmente os factos apontados pelos Autores a quem dedicámos particular referência.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 51 a 54

Ao Padre Manuel da Nóbrega sucedeu, como Provincial da Companhia no Brasil, o Padre José de Anchieta, seu digno continuador na acção de converter «estes pobres Índios que tão tiranizados estão do demónio».

Pede continuamente para a Metrópole o envio de mais Padres e Irmãos, tendo visto igualmente o grande alcance dos colonizadores leigos, quando conscientes das suas responsabilidades.

Vai entretanto falando das condições da terra e do modo de vida dos seus habitantes. Na Informação do Brasil e suas Capitanias, depois de se referir às Capitanias e ao seu carácter histórico-geográfico, assim como aos colonizadores, governadores, bispos e jesuítas de cada uma delas, ocupa-se dos costumes dos Brasis. É curioso o texto em que narra a honra que tinham de matar grande número de «contrários»:

«Naturalmente são inclinados a matar, mas não são crueis: porque ordinariamente nenhum tormento dão aos inimigos, porque se os não matam no conflito da guerra, depois tratam-os muito bem, e contentam-se com lhes quebrar a cabeça com um pau, que é morte muito fácil, porque às vezes os matam de uma pancada ou ao menos com ela perdem logo os sentidos. Se de alguma crueldade usam, ainda que raramente, é com exemplo de Portugueses e Franceses».

Não deixa de ser interessante este comentário, que coloca os Índios num plano superior aos Europeus, mesmo naquilo que viria a constituir um dos principais, senão o principal obstáculo ao tema do «bom selvagem»; facilmente se concebe o gosto que sentiriam alguns escritores do século XVIII ao ler um texto deste género.

Um pouco mais abaixo diz ainda:

«O que mais espanta aos Índios e os faz fugir dos Portugueses, e por consequência das Igrejas, são as tiranias que com eles usam, obrigando-os a servir toda a sua vida como escravos, apartando mulheres de maridos, pais de filhos, ferrando-os, vendendo-os, etc., e se algum, usando de sua liberdade, se vai para as igrejas de seus parentes que são cristãos, não o consentem lá estar, de onde muitas vezes os Indios, por não tornarem aos seu poder, fogem pelos matos, e quando mais não podem, antes se vão dar a comer aos seus contrarios».

[…]

Podemos considerar Manuel da Nóbrega como antecessor de Anchieta, devido ao seu Diálogo. Os autos do segundo são, no entanto, bastante diferentes deste. São em verso, não se limitam a pôr em cena duas personagens e, sendo muito menos conceituosos, prestavam-se a uma acção mais imediata. Aliás, só com Anchieta estas composições se fixaram definitivamente.

De todos esses autos, grande número perdeu-se e outros chegaram até nós anónimos. Quanto ao Padre José de Anchieta, sabe-se que é autor do Auto de S. Lourenço, Na festa do Natal, Na Visitação de Santa Isabel, Na Vila de Vitória, publicados em edição crítica com traduções dos fragmentos em tupí, por Maria de Lourdes de Paula Martins.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 48 a 50

O que notamos já nestes textos é uma atitude diferente daquela dos primeiros exploradores e viajantes.

O interesse pela conversão do gentio, já manifestado por Caminha, torna-se aqui o ponto fundamental, a constante de pensamento do Padre Manuel da Nóbrega.

Os costumes dos indígenas interessam portanto não já apenas em si mesmos, como curiosidade, mas na medida em que se opõem à religião católica, e é sobretudo na intenção de fazer conhecer aos membros da Companhia, que se encontravam na Europa, as dificuldades do seu ministério, que Nóbrega os descreve. De princípio entusiasma-se com a facilidade com que aceitam tudo o que lhes ensinam – 

«Ho Irmão Vicente Rijo insina ha doctrina aos minimos cada dia, tambem tem escola de ler e escrever; parece-me bom modo este para trazer os Indios desta terra, hos quais tem grande desejos de aprender e, perguntados se querem, mostram grandes desejos. Desta maneira ir-lhes-ey insinando as orações e doctrinando-os na fé até serem habiles para o baptismo. Todos estes que tratam connosco, dizem que querem ser como nós».

– mas em breve reconhece que, se acatam facilmente os ensinamentos que lhes ministram, nem por isso abandonam os seus costumes e são igualmente crédulos para com tudo o que lhes queiram dizer.

Apesar de todas as contrariedades, Manuel de Nóbrega não perde a coragem. Está bem firme na crença de que é possível a conversão dos Índios, e essa convicção reflecte-se precisamente no Diálogo sobre a Conversão do Gentio (1556-1557), um dos documentos mais interessantes desta época.  

 O diálogo trava-se, hipoteticamente, entre os irmãos Gonçalo Alvarez e Mateus Nogueira. Censuram primeiro a antropofagia dos Índios, a sua falta de governo (rei) e de religião; mas pior do que tudo é serem inconstantes. […]

Em resumo: chegou-se, em primeiro lugar, à conclusão de que os Índios são homens como todos os outros, possuidores de uma alma e, portanto, capazes de se converterem. E se esses selvagens são tão «bestiais» enquanto os europeus são «políticos e avissados», isso depende única e simplesmente das condições em que foram criados. São, portanto, na sua essência, iguais a todos os outros homens, deles diferindo apenas por circunstâncias exteriores.

No que respeita ao caso particular da sua conversão, pesando as vantagens e desvantagens que possuem em relação aos Europeus, chega-se à conclusão de que são no fundo mais fáceis de converter do que os civilizados.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 44 a 48

Escrevendo sobre o Brasil contemporaneamente aos exploradores e viajantes, há aqueles que nele se estabeleceram procurando civilizá-lo.

Dentre esses colonizadores, apenas os Jesuítas nos deixaram documentos sobre o Índio, pois às relações de carácter oficial interessavam apenas os problemas de organização externa. Os Jesuítas, procurando cristianizar os indígenas, ocupavam-se do Índio como pessoa, como homem capaz de um comportamento moral. Apressavam-se em seguida a dar conta dos seus trabalhos, dos seus progressos e dificuldades, aos restantes membros da Companhia, e assim nos deixaram numerosos textos cheios de interesse.

É em 1549, no dia 1 de Fevereiro, que os primeiros Jesuítas partem para o Brasil; são seis, e entre eles vai, como superior, o Padre Manuel da Nóbrega que, não só pela colaboração que prestou ao Governo Geral do Brasil, como pela firme resolução de trabalhar intensamente na conversão dos Índios, tanto relevo veio a ter entre os primeiros colonizadores. Se, contudo, a organização civil do Brasil sempre o interessou, tocava-lhe muito mais de perto a sorte dos Índios.

Diz Serafim Leite que, para além do interesse manifestado pelo modo de vida dos selvagens, aos Padres importava acima de tudo determinar a medida em que esses Índios poderiam ser cristianizados e civilizados.

É, na verdade, este, o objectivo de Manuel da Nóbrega, assim como de todos os outros membros da Companhia. Quanto ao aspecto sob o qual via os Índios, diz o Padre Manuel da Nóbrega em carta a Martin de Azpilcueta Navarro, depois de se referir às boas qualidades da terra, no que respeita ao seu clima e produção:

«Mas é muito de espantar ter dado (o Criador) tão boa terra tanto tempo a gente tão inculta, e que tão pouco o conhece, porque nenhum deus tem certo e qualquer que lhe dizem crêem. Regem-se por inclinação, a qual sempre prona est ad malum, e apetite sensual, gente absque consilio et sine prudentia. Têm muitas mulheres enquanto se contentam delas e elas deles, sem entre eles ser vituperado».

E, depois de ter falado do hábito que têm de comer os «contrários» que ficam prisioneiros de guerra, conclui:

«E nestas duas coisas, scilicet , em ter muitas mulheres e matar os seus contrarios, consiste toda a sua honra e esta é a sua felicidade e desejo, o qual tudo herdaram do primeiro e segundo homem e aprenderam daquele qui ab initio mundi homicida est».

Na Informação das terras do Brasil (Aos Padres e Irmãos da Companhia) refere-se às manhas dos feiticeiros, à facilidade com que nelas acreditam, à forma como tratam os mortos e, de novo, à maneira de matar os «contrários» aprisionados em guerra. Não são, no entanto, apenas os defeitos que contam. Têm também qualidades: possuem um certo sentido de família, são valentes e generosos.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 42 e 43

Nenhuma das obras de que até aqui nos ocupámos tem, no entanto, o interesse das de Pero de Magalhães Gândavo, Autor de uma Historia da Província de Santa Cruz e do Tratado das Terras do Brasil no qual se contem informações das cousas que há nestas partes (1.ª ed. 1576).

Na primeira destas obras, depois de uma descrição da terra, das povoações, mantimentos, frutos, aves, peixes e outros animias, encontramos um capítulo sobre um monstro marinho, que tem o interesse de nos revelar que, na verdade, havia quem acreditasse afincadamente na existência desses seres estranhos e cruéis que povoavam paragens desconhecidas […].

São também cheias de interesse as notas que nos deixa sobre os costumes dos selvagens. Depois de os descrever fisicamente, diz que são desagradecidos, desumanos, cruéis, vingativos e excessivamente crédulos. Fala, como todos os outros exploradores e viajantes, da ausência da Fé, de Lei e de Rei entre os indígenas, simbolizada pela falta de F. L. R. no seu alfabeto […]

A posição de Gândavo é, apesar disso e no seu conjunto, bastante desfavorável aos Índios. Na segunda das suas obras a que nos referimos, ao ocupar-se dos Índios Aimorés – encontraremos daqui em diante distinções entre os Índios das várias tribos – diz:

«Vivem entre os matos como brutos animais (…). Finalmente, não tem rosto direito a ninguém, senão à traição fazem a sua».

E, depois de, entre outros factos, falar das suas lutas, da poligamia, do costume que tinham de comer carne humana e, mais demoradamente, do seu aspecto exterior, acrescenta:

«Outras muitas bestialidades usam estes Índios, que aqui não escrevo».

[…]

Na verdade, em todos os textos que até agora estudámos, cremos que, como primeira característica comum a todos eles, se nota o facto de o Índio ser visto por uma forma parcelar e, portanto, muito exterior e muito imediata, nos aspectos que mais rapidamente ressaltam de um primeiro contacto.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 38 a 41

O primeiro dentre todos os escritores a referir-se ao Índio Americano foi o próprio Cristóvão Colombo, nas suas cartas, já atrás mencionadas.

Em notações rápidas e objectivas, apresenta-nos os selvagens como extremamente desinteressados e preocupa-se em informar-nos de que não achou entre eles os homens monstruosos de que se falava.

Se às suas palavras se atribuiu um alcance maior do que possuíam, isto não é já da sua responsabilidade.

Não há aqui preocupações metafísicas, de saber se o homem é ou não naturalmente bom, nem políticas e sociais, de saber se é ou não superior ao homem civilizado da Europa. Há, apenas, narração de factos.

Será esta também a atitude dos viajantes portugueses que escreveram sobre o Brasil.

Um dos primeiros documentos que sobre ele possuímos é a carta de Pero Vaz de Caminha, cronista da armada de Pedro Álvares Cabral: veio a tornar-se muito conhecida, tendo sido publicada pela primeira vez por Ayres Casal em Corografia Brasílica, vertida para francês por Ferdinand Denis e para alemão por Olfers.

[…]

É escusado encarecer o encanto deste texto, na simplicidade e na admiração com que está escrito. O seu realismo trai uma testemunha ocular. Sente-se que Pero Vaz de Caminha ficou impressionado com o que observou e que procura transmitir-nos essa mesma impressão.

[…]

Contemporânea desta carta é a conhecida Relação do Piloto Anónimo, de quem apenas se sabe que pertencia à Armada de Pedro Álvares Cabral. Este piloto faz do Índio uma descrição muito mais exterior, se assim se pode dizer, do que Pero Vaz de Caminha. Quando a ele se refere, limita-se a dizer que andavam nus, como traziam o cabelo e a barba, como se pintavam e as pedras e ossos com que enefeitavam  os lábios.

[…]

Incluiremos no conjunto destes textos – devido à forma por que se ocupa do Índio – o Roteiro da viagem da cidade do Pará e toda a sua capitania até aos confins do Rio Negro, que se encontra sem data, anónimo e manuscrito na Biblioteca da Academia de Lisboa. Nela faz o seu Autor descrições pormenorizadas da terra, dos animais e plantas, e, evidentemente, dos costumes dos Índios, das suas guerras, da maneira que têm de caçar, embora sempre de uma forma objectiva e exterior, como todos os que o precederam. 

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 35 a 38

Olhando o conjunto dos textos que, no decurso dos séculos XVI, XVII e XVIII, se ocuparam do Índio do Brasil, vemos que este, longe de ser tratado de uma maneira uniforme, vai sendo integrado dentro do sistema ideológico de cada época e gradativamente enriquecido com novas facetas.

[…]

O conceito do Renascimento, transcendendo o campo cultural, virá, na verdade, a significar uma renovação total de vida, em vista a novos conceitos e realizações, que o século XVI, no entanto desconhece ainda.

E é precisamente nesta altura que surgirá, ou melhor, que se materializará (pois o conceito, em certa medida, já existia) um novo tipo de homem-ideal, que vivia segundo concepções diferentes, alheio a todos os problemas que na Europa se agitavam, numa vida simples e sem artifícios, mais próxima, para muitos, da natureza e da verdade e, para muitos também, melhor do que qualquer outra. Este homem-ideal, identificado com o Índio Americano, será, portanto, necessariamente contraposto aos Europeus e representará, em relação a estes, um modelo a atingir.

É assim fácil de conceber a curiosidade que todos sentiam em relação a esses novos povos e a ansiedade com que recebiam toda e qualquer narrativa das viagens efectuadas. O Índio seria ou não mais feliz do que os Europeus, na sua vida de selvagem? Era o que importava acima de tudo descobrir. A resposta a esta pergunta e a resolução do problema variará, é claro, de acordo com as concepções de cada escritor. Podemos, no entanto, determinar duas correntes essenciais: uma, descrever-nos-á o Índio como um homem bom e feliz, e os seus defeitos serão levados à conta de divergências inevitáveis entre um e outro povo; outra, mais objectiva, reconhecerá as suas qualidades, apontará os seus vícios e, dando embora mais relevo àquelas ou a estes, apresentar-nos-á, afinal, um homem com qualidades e defeitos como o europeu, a ele superior em alguns pontos, mas bem inferior noutros.

“O Índio do Brasil na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII”, de Maria da Conceição Osório Dias Gonçalves, Separata de BRASILIA, vol. XI, Coimbra, 1961, pp. 21 a 23

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