Cap. 134 – Da honra que o nautaquim fez a um dos nossos por o ver atirar com uma espingarda, e do que daí sucedeu
Logo ao outro dia seguinte, este necodá chim desembarcou em terra toda a sua fazenda como o nautaquim lhe tinha mandado, e a meteu numas boas casas que para isso lhe deram, a qual fazenda se vendeu toda em três dias, tanto por ser pouca como porque estava a terra falta dela, na qual este corsário fez tanto proveito que de todo ficou restaurado da perda dos vinte e seis barcos que os chins lhe tomaram, porque pelo preço que ele queria pôr na fazenda, lha tomavam logo, de maneira que nos confessou ele que com só dois mil e quinhentos taéis que levava de seu, fizera ali mais de trinta mil.
Nós os três portugueses, como não tínhamos veniaga em que nos ocupássemos, gastávamos o tempo em pescar e caçar, e ver templos dos seus pagodes que eram de muita majestade e riqueza, nos quais os bonzos, que são os seus sacerdotes, nos fasiam muito gasalhado, porque toda a gente do Japão é naturalmente muito bem inclinada e conversadora. No meio desta nossa ociosidade, um dos três que éramos, de nome Diogo Zeimoto, tomava algumas vezes por passatempo atirar com uma espingarda que tinha de seu, a que era muito inclinado, e na qual era assaz destro. E acertando um dia de ir ter a um paul onde havia grande soma de aves de toda a sorte, matou nele com a munição, umas vinte e seis marrecas.
Os japões, vendo aquele novo modelo de tiros que nunca até então tinham visto, deram rebate disso ao nautaquim que neste tempo andava vendo correr uns cavalos que lhe tinham trazido de fora, o qual espantado desta novidade, mandou logo chamar o Zeimoto ao paul onde estava caçando, e quando o viu vir com a espingarda às costas, e dois chins carregados de caça, fez disto tamanho caso que em todas as coisas se lhe enxergava o gosto do que via, porque como até então naquela terra nunca se tinha visto tiro de fogo, não sabiam determinar o que aquilo era, nem entendiam o segredo da pólvora, e assentaram todos que era feitiçaria.
O Zeimoto, vendo-os tão pasmados e o nautaquim tão contente, fez perante eles três tiros em que matou um milhano e duas rolas, e para não gastar palavras no encarecimento deste negócio, e para escusar de contar tudo o que se passou nele, porque era coisa para se não crer, não direi mais senão que o nautaquim levou o Zeimoto nas ancas de um cavalo em que ia acompanhado de muita gente, e quatro porteiros com bastões ferrados nas mãos, os quais bradando ao povo que era neste tempo sem conto, diziam:
– O nautaquim, príncipe desta ilha de Tanixumá e senhor de nossas cabeças, manda e quer que todos vós outros, e assim os mais que habitam a terra de entra ambos os mares, honrem e venerem este chenchicogim do cabo do mundo, porque de hoje por diante o faz seu parente, assim como os facharões que se sentam junto de sua pessoa, sob pena de perder a cabeça o que isto não fizer de boa vontade. A que todo o povo respondia:
– Assim se fará para sempre.
E chegando o Zeimoto com esta pompa mundana ao primeiro terreiro dos paços, descavalgou o nautaquim e o tomou pela mão, ficando nós os dois um bom espaço atrás, e o levou sempre junto de si até uma casa onde o sentou à mesa consigo, na qual também para lhe fazer a maior honra de todas, quis que dormisse aquela noite, e sempre dali por diante o favoreceu muito, e a nós por seu respeito, em alguma maneira.
E entendendo então o Diogo Zeimoto que em nenhuma coisa podia melhor satisfazer ao nautaquim alguma parte destas honras que lhe fizera, e que nada lhe daria mais gosto que lhe dar a espingarda, lha ofereceu um dia que vinha da caça com muita soma de pombas e rolas, a qual ele aceitou por peça de muito apreço e lhe afirmou que a estimava mais que todo o tesouro da China, e lhe mandou dar por ela mil taéis de prata, e lhe rogou muito que o ensinasse a fazer a pólvora, porque sem ela ficava a espingarda sendo um pedaço de ferro desaproveitado, o que o Zeimoto lhe prometeu e lho cumpriu. E como dali por diante o gosto e passatempo do nautaquim era no exercício desta espingarda, vendo os seus que em nenhuma coisa o podiam contentar mais que naquela de que ele mostrava tanto gosto, ordenaram mandar fazer, por aquela, outras do mesmo teor, e assim o fizeram logo. De maneira que o fervor deste apetite e curiosidade foi dali por diante em tamanho crescimento que já quando dali nos partimos, que foi dali a cinco meses e meio, havia na terra passante de seiscentas. E depois a derradeira vez que me lá mandou o vice-rei D. Afonso de Noronha, com um presente para o rei do Bungo, que foi no ano de 1556, me afirmaram os japões que naquelas cidade do Fuchéu, que é a metrópole deste reino, havia mais de trinta mil. E fazendo eu disto grande espanto, por me parecer que não era possível que esta coisa fosse em tanta multiplicação, me disseram alguns mercadores, homens nobres e de respeito, e mo afirmaram com muitas palavras, que em toda a ilha do Japão havia mais de trezentas mil espingardas, e que eles somente tinham levado de veniaga para os léquios, em seis vezes que lá tinham ido, vinte e cinco mil.
De modo que por esta só que o Zeimoto aqui deu ao nautaquim, com boa tenção e por boa amizade, e para lhe satisfazer parte das honras e mercês que tinha recebido dele, como atrás fica dito, se encheu a terra delas em tanta quantidade que não há já aldeia nem lugar por pequeno que seja, donde não saiam de cento para cima, e nas cidades e vilas mais notáveis, não se fala senão por muitos milhares delas. E por aqui se saberá que esta gente é, e quão inclinada por natureza ao exercício militar no qual se deleita mais que todas as outras nações que agora se sabem.
(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – I” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 22, Junho de 2002 – a partir de “Peregrinação”, versão para português actual e glossário de Maria Alberta Menéres, nota introdutória de Eduardo Prado Coelho, vol. I, Lisboa, Relógio d’Água, 2001)