Suma Oriental – Frei Tomé Pires


Artigo xlii, que fala dos bramines do Malavar.

Bramines sam sacerdotes, e trazam hũa linha depemdurada do ombro esquerdo por debaixo do braço direito, e de vimta sete fios feitos em tres. A milhor geração destes bramines sam chatas e depois patamares, e despos estes lambudario, e os mais somenos sam lambures. Trazem estes bramines o nacimento amtiquisimo, sam de mais limpo samge que os naires. Tem carrego d’estar rezamdo, sam emtemdidos nas cousas de sua cremça. Os mais omrrados destes estam com os reis do Malavar. Sam homens que não comem nenhũa cousa que fose viva e tivese samge, e por esta causa pronunciarão os amtiguos deles/que nam fose nenhum no Malavar tão poderoso que matase vaca nem a comese, so[b] pena de morte e de grande pecado. A rezão será por comerem o leite os bramines, pois emgeitaram a carne, domde pereçe pois tamto estimão as vacas, por que em muitas partes os gemtios as adoram como cousa samta. Estes bramines tem poder de escomungar e de a[b]solver. Nenhum nam traz armas nem vai à gerra nem se mata per nenhum caso, aimda que o mereça francamente. Amdam por omde querem, posto que seja em gerra.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “O Manuscrito de Lisboa da Suma Oriental” de Tomé Pires; Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Instituto Português do Oriente, 1996)

Artigo xli, que fala dos naires e seus custumes.

A gemte do Malavar hé preta e baça e parda, sam todos os reis gemtios bramenes ou de casta de seus sacerdotes. A limguajem hé toda hũa, asi como em Itália, defere se pouca cousa. E toda a terra muito pavoada. Averá neste Malavar duzemtos mill naires, homens de peleja d’espada e adarga e frecheiros. São homens que adoram o seu rei, e se por acaso o rei morre em batalha, sam hobrigados ha morrer, e se o não fazem desterram se da terra e ficam emjuriados pera sempre. Sam estes naires homens leais e nam tredos. Primeiro que hum rei do Malavar peleje com outro lho a de fazer saber, pera que se aperceba. Nenhum naire, como hé de idade pera tomar armas, não pode sair de casa sem ellas. E quando está pera morrer, sempre tem jumto consiguo a espada e adarga, tam perto que se lhe comprir que a posa tomar. Custumão todos fazer gram reveremçia aos mestres que os emsinão, em /tamta maneira que ho milhor dos nairres, se achar hum mestre que allgũa cousa lhe emsinou, faz lhe reveremçia e depois vai se lavar. E se hum naire acha em hum caminho a outro naire mais velho, adora o e dá lhe caminho. E se estiverem tres ou quatro irmãos, ho mais velho á d’estar asemtado e os outros em pee.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “O Manuscrito de Lisboa da Suma Oriental” de Tomé Pires; Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Instituto Português do Oriente, 1996)

Artigo xxxv, que fala da gemte deste reino e de seu sofrimento.

As gemtes deste reino de Guoa por nenhum tormento não confecarão cousa que façam. Sofrem grandemente e soem ter atormentados de diverços tormentos. Amtes morrem que confeçar o que detriminão calar. E as molheres de Guoa são generosas no vestir, as que damção e volteam o fazem com milhor maneira que todalas destas partes. E custuma se neste reino toda molher de gemtio queimar se por morte de seu marido. Amtre si tem todos isto em preço; os paremtes dela ficam desomrrados quando se não querrem queimar. As que de má mente recebem o sacrefiçio ou se não querem queimar ficam pubricas furnicarias e ganham pera as despesas e fábricas dos templos domde sam fregesas, no quall oficio morrem. Estes gemtios tem hũa so melhor per ordenança, e muitos bramines prometem castidade e sostem na sempre. Nos outros portos de Guoa se carrega muito arroz, sall, betele, arrequa. E todolos rios tem pavoações arredados d’aguoa, com temor, e os que deste sam seguros navegam e os que não perdem se e estam da mão do Sabaio, com capitães que recolhem as remdas da terra. E de/les põem gemte de guarnição de cavalo, porque tem continuamente gerra com as terras de Narsimga.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “O Manuscrito de Lisboa da Suma Oriental” de Tomé Pires; Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Instituto Português do Oriente, 1996)

Trato da Persia.

Á nesta terra da Pérsia gram soma de mercadorias, e a terra é em si de grande trato, por que ho tem des[de] ho Cairo ate Armenia, em que se contem muitas provimçias mui nobres e ricas. E de Torquia, pela /Suria, vem grande trato à Pérsia. Tem ha terra riqueza e outras muitas seedas, de que se fazem os panos e outras sortes de chamalotes de cores finos; tem tutia em garnde camtidade, muita pedra hume, caparoza, allcofor, que os mouros muito usam; tem muitos cavalos e mantimentos, tem muitas torquezas, que nasem na terra de Cues, tem muita sera, mell, manteiga. E tudo isto hé naturall da terra. Pela bamda do reino de Deli, detras da serra, parese vir pela via de Siam, de reino em reino, allmisquere, ruibarbo, agila, lenho aloes de botica e cânfora. Todas estas cousas, e outras muitas, vem d’Ormuz: tapetes grandes e alcatifas, e panos de lam, muitos e de muitas cores, chapeos, barretes à sua gisa, armarias sem numero. Retornão gram soma de mercadorias, d’espeçearias e drogas, prinçipallmente pimenta, que se gasta muito na Perçia, por que sam humens de mais potageens que Alemais.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “O Manuscrito de Lisboa da Suma Oriental” de Tomé Pires; Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Instituto Português do Oriente, 1996)

Suma Oriental

Artiguo xi, que fala d’Arrabia Deserta.

Esta terra d’Arrabia Deserta, pelo estreito de Mequa, começa de Judaa ate o Toro e vai ao mar Mediterraneo, e devide ha terra do Egito de Judaa. Alguns afirmão que Mequa hé nesta terra e não na Petrea. Desta não há que dizer. Tem alarves ladrõis, não tem arvores nem fruitas nem aguoa gerallmente, salvo em ho lugar dos alarves sabidos. Não tem outra vida se não furtar, sam maliciosos e fora de rezão, amdam em cabildas salteamdo omde o achão. […]

Artiguo xiii, que fala da Pérsia.

Porque Ormuz hé vezinho da Pérsia, pareçe me rezão falar dela neste lugar. Esta grande e amtiga província, de que tantos escritores escreverão, não tem mais no mar Oceano que ho reino d’Ormuz. Sua confirma/cão hé da bamda de Cambaia os Nautaques, da bamda d’Arabia o estreito d’Ormuz, pola terra firme as serranias de Deli, per Arménia casi por Babilónia e por Media, e vem dar na Imdia. É devidida estra provimçia em mais de quarenta reinos e regiõis, dela hé abitada e mui boa, e dela mui perigosa, muntuosa e desabitada. Chama se esta província asi toda jumta, na limgajem deles, Ageus, e nós chamamos lhe[s] Persas ou Persianos. As milhores provimcias sam quatro, scilicet, Tauris, Xiras, Tamarcalte, Coracori. Sam homens gerreiros e de peleja e estimados, e dizem que trazem o nacimento de cristãos, digo pelos Tamarcais. Os de Tauris e Xiras sam como em França Paris, sam domésticos, gemtis homens, cortesãos, e sobre tudo se louvão as molheres de Xiras, de fremosas e alvas e discretas e ataviadas. Omde os Mouros dizem que Mafamede nunca quis ir a Xiras, por que gostamdo desta cidade e seu trato, nunca quisera ir ao paraíso depois de morto. […]

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “O Manuscrito de Lisboa da Suma Oriental” de Tomé Pires; Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Instituto Português do Oriente, 1996)