Tratado das Cousas da China – Frei Gaspar da Cruz


Acontece muitas vezes, quando botam as sortes sobre coisa de peso, se a sorte não sai boa, ou se botando um navio ao mar não vai bem e lhe acontece qualquer falta, arremetem aos deuses e os lançam na água, e metem-nos na chama às vezes do fogo e os deixam chamuscar um pouco, e dão-lhe[s] muitos coices e trazem-nos debaixo dos pés, e injuriam-nos de palavras, até que acabado seu negócio o[s] levam com tangeres e festas e lhe[s] levam suas ofertas.

Têm por grande oferta cabeça de porco cozida. E oferecem galinhas, patos e adens e arroz, tudo guisado, e grão pichel de vinho. Depois de apresentarem tudo aos deuses, põem-lhe[s] sua ração à parte, a qual é porem em um bacio as pontinhas das orelhas do porco, os bicos e pontas das unhas dos adens, patos e galinhas, uns grãos de arroz muito poucos e lançados com grande tento, três ou quatro gotas de vinho muito a tento, que não caiam muitas gotas do pichel. Estas coisas assim postas em um bacio, põem-nas aos deuses no altar [para] que comam, e eles põem-se ali diante dos deuses a comer tudo o que trazem.

Adoram também estas gentes o diabo, o qual pintam ao modo que se pinta entre nós. E dizem que o adoram porque aos bons faz diabos e aos maus faz búfalas ou vacas ou outros animais. E dizem que o diabo que tem um mestre que lhe ensina suas maldades. Estas coisas diz a gentes baixa. Os mais polidos dizem que o adoram porque lhe[s] não faça mal.[…]

Entrei um dia em um templo e cheguei-me a um altar, no qual estavam umas pedras alevantadas a quem adoravam. E confiado no pouco em que estimavam seus deuses e em serem homens que se satisfariam da razão, dei com as pedras no chão, ao que arremeteram alguns rijo a mim e indignados, dizendo porque fizera aquilo. Fui-me eu a eles brandamente e sorrindo-me lhe[s] disse “porque eram tão inconsiderados que adoravam aquelas pedras”. Disseram-me que “porque as não adorariam”. Mostrei-lhe[s] eu como eles eram melhores do que as pedras, pois tinham uso de razão, pés e mãos e olhos com que faziam diversos ofícios que a pedra não podia fazer, e que pois eram melhores, não se haviam de abaixar e ter em tão pouco que adorassem coisa tão vil, sendo eles tão nobres. Responderam-me que tinha muita razão, e saíram-se comigo acompanhando-me para fora, deixando ficar as pedras no chão. De maneira que achei neles estas mostras e aparelho para cristandade.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Tratado das Coisas da China”, Introd., modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Edições Cotovia, 1997)

Chamam comummente estes deuses Omistoffois. Oferecem-lhes incenso e benjoim, águila e outro pau que chamam caioláque, e outros cheiros. Também lhe[s] oferecem o chá, de que já dissemos acima. Todos têm oratórios e à entrada detrás das portas das casas, nos quais têm seus ídolos de vulto, aos quais todos os dias pela manhã e à noite oferecem incenso e outros cheiros. Têm por muitas partes, assim nas povoações como fora delas, templos de ídolos. Em todos os navios em que navegam, logo fazem nas popas lugar para seus oratórios, nos quais levam seus ídolos.

Em todas as coisas que hão-de cometer, ou caminhos por mar ou por terra, usam de sortes e lançam-nas diante dos seus ídolos. As sortes são de dois paus feitos ao modo de meia noz, chãos de uma banda e roliços da outra, e maiores outro tanto que meia noz, cozidos por um cordel. E quando querem lançar a sorte, falam primeiro com o seu deus, namorando-o com palavras e prometendo-lhe alguma oferta se lhe[s] der boa sorte e na boa sorte lhe[s] mostrar sua boa viagem ou bom sucesso de seu negócio. E depois de muitas palavras lançam as sortes, e se caiem ambas com o espalmado para cima, ou uma para cima e outra para baixo, têm-no por ruim sorte, e volvem-se contra os seus deuses muito melancólicos, chamando-o[s] de perro, cão e muitas outras injúrias. Depois que se enfadam de os injuriar, tornam com palavras brandas a afagá-los, e a lhe[s] pedir perdão, dizendo que a melancolia de lhe[s] não dar boa sorte lhe[s] causara fazerem-lhe[s] injúria e dizerem-lhe[s] palavras injuriosas. Mas que lhe[s] perdoem e lhe[s] queiram dar boa sorte, que lhe[s] prometem de lhe[s] oferecer mais tal coisa, porque as promessas são para proveito de quem as promete. Fazem muitos e grandes oferecimentos, e desta maneira tantas vezes lançam as sortes até que caem ambas com o espalmado para cima, que têm por boa-sorte. Então, ficando muito contentes, oferecem a seus deuses o que lhes prometeram.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Tratado das Coisas da China”, Introd., modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Edições Cotovia, 1997)

Capítulo XXVII

Dos ritos e adorações dos chinas.

Não tem esta gente conhecimento algum de Deus, nem entre todos eles se acha rasto de tal conhecimento, o que mostra ser verdade não serem dados à contemplação das coisas naturais, nem haver entre eles estudos de filosofia natural, como alguns portugueses quiseram dizer que havia, movidos pelos estudos que sabiam que tinham, mas não sabiam serem de leis e não de filosofia. Ainda que, como disse, alguns por algumas escrituras de antigos têm alguma notícia dos eclipses do Sol e Lua, mas não que haja disto estudos gerais.

Se este estudo tiveram, era bastante para por ele virem a conhecimento de Deus, como o tiveram os filósofos antigos, dizendo o apóstolo São Paulo, na epístola aos Romanos, que as coisas invisíveis de Deus e sua divindade, poder e eternidade se vêm a conhecer pela contemplação e conhecimento das coisas criadas e visíveis. Pelo que, não terem os chinas conhecimento de um Deus, é bastante argumento para mostrar que os chinas não têm estudos de filosofia natural, nem se dão à contemplação das coisas naturais, contra alguns portugueses que quiseram afirmar o contrário. […]

Na cidade de Cantão, no meio do rio que é d’água doce e muito largo, está uma ilheta pequena, na qual está uma maneira de mosteiro de sua maneira de padres. E dentro neste mosteiro vi um oratório alto do chão, muito bem feito, com umas grades diante douradas e feitas ao torno. No qual estava uma mulher muito bem feita com um menino ao colo, e tinha uma alâmpada diante acesa. Suspeitando eu ser aquilo algum rasto de cristandade, perguntei a alguns seculares que ali achei, e a alguns dos sacerdotes dos ídolos que ali estavam, que significava aquela mulher, e não mo soube ninguém dizer, nem dar razão. Bem podia ser imagem de Nossa Senhora, feita pelos cristão antigos que ali deixou São Tomé, ou por sua ocasião feita. Mas a conclusão é que tudo é esquecido. Podia também ser alguma gentilidade.

Assim que o maior deus que têm é o céu, pelo qual a letra que o significa é o princípio e a primeira de todas as letras. Adoram o Sol e a Lua e as estrelas, e quantas imagens fazem, sem respeito nenhum. Têm todavia imagens de loutiás que adoram por haverem sido em alguma coisa ou coisas insignes. E assim [têm] estátuas e imagens dalguns sacerdotes dos ídolos e algumas doutros homens por alguns respeitos particulares. E não somente adoram estas imagens, mas quaisquer pedras que alevantam nos altares dentro dos seus templos.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Tratado das Coisas da China”, Introd., modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Edições Cotovia, 1997)

Sem embargo das sobreditas leis, não deixam alguns chinas de navegar para fora da China a tratar; mas estes não tornam mais à China. Destes vivem alguns em Malaca, outros em Sião, outros em Patane, e assim por diversas partes do Sul estão espalhados alguns destes que saem sem licença. Pelo que destes que já vivem fora da China, alguns tornam em seus navios a navegar para a China debaixo do amparo dos portugueses. E quando hão-de despachar os direitos de seus navios, tomam um português seu amigo a quem dão algum interesse, para que em seu nome lhe despache os clientes. Alguns chinas, desejando ganhar o remédio para sua vida, saem mui escondidos nestes navios destes chinas a contratar fora, e tornam mui escondidos que o não saibam nem seus parentes, porque se não divulgue e não incorram na pena que os tais têm. Pôs-se esta lei porque achou el-rei da China que a muita comunicação das gentes de fora lhe podia ser causa dalguns alevantamentos, e porque muitos chinas, com achaque de navegarem para fora, se faziam ladrões e salteavam as terras de longo do mar. E nem com este resguardo deixa de haver muitos chinas ladrões ao longo da costa do mar. […].

Os chinas que andavam entre os portugueses, e alguns portugueses com eles, vieram-se a desmandar, de maneira que começaram a fazer grandes furtos e roubos e [a] matar alguma gente. Foram os males em tanto crescimento e o clamor dos agravados foi tão grande, que chegou não somente aos loutiás grandes da província mas também a el-rei. O qual mandou logo fazer uma armada muito grossa na província de Funquem, para que lançasse todos os ladrões da costa, principalmente os que andavam em Liampó, e todos os mercadores, assim portugueses como chinas, entravam na conta dos ladrões. Fazendo-se prestes a armada, saiu-se ao longo da costa do mar. E porque os ventos lhe não serviam já para poder ir a Liampó, foram-se para a banda do Chincheo, onde achando navios de Portugueses começaram a pelejar com eles, e de nenhuma qualidade deixavam vir nenhuma fazenda aos portugueses. […]

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Tratado das Coisas da China”, Introd., modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Edições Cotovia, 1997)

Capítulo XXIII

De como tratavam os portugueses nos tempos passados com os chinas e de como armaram sobre eles.

Porque falámos muitas vezes acima em portugueses cativos na China, será conveniente coisa que se saiba a causa de seu cativeiro, onde se dirão muitas coisas notáveis. Há-se de saber que desde o ano de [mil quinhentos e] cinquenta e quatro a esta parte se fazem as fazendas na China muito quietamente e sem nenhum perigo. E desde então até agora não se perdeu nenhum navio, senão por algum grande desastre, havendo-se perdido no tempo passado muitos. Porque como andavam quase de guerra os chinas com os portugueses, [estes,] quando vinham as armadas sobre eles, alevantavam-se e saíam-se ao mar e estavam em lugares mal amparados dos tempos; pelo que vindo as tempestades perdiam-se muitos, dando à costa ou em alguns baixos. […].

Antes do tempo sobredito, e depois do alevantamento que causou Fernão Peres d’Andrade, faziam-se as fazendas com muito trabalho. [Os Chinas] não consentiam os portugueses na terra, e por ódio e aborrecimento lhe[s] chamavam Fancui, que quer dizer “homens do diabo”. Agora não nos comunicam debaixo de nome de portugueses, nem este nome foi à corte quando [os nossos] assentaram pagar direitos, senão debaixo de nome de Fangim, que quer dizer “gente doutra costa”.

Há-se de saber mais que é lei na China que nenhum china navegue para fora do reino sob pena de morte; só lhe é lícito navegar ao longo da costa da mesma China. E ainda ao longo da costa, nem de uma parte para outra na mesma China, [não] lhe[s] é lícito ir sem certidão dos loutiás da terra donde partem, na qual se relata para onde vai e o negócio a que vai, e os sinais de sua pessoa e a idade que tem. Se não leva esta certidão é degredado para as partes fronteiras. O mercador que leva fazenda leva certidão da fazenda que leva e como pagou direitos dela. Em cada alfândega que há em cada província paga uns direitos, e não nos pagando perde a fazenda e degredam-no para as partes fronteiras.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Tratado das Coisas da China”, Introd., modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Edições Cotovia, 1997)

Foram-se um dia uns portugueses nobres mostrar em Cantão um banquete que fazia um mercador rico e honrado, o qual foi para folgar de ver. A casa em que se dava era sobradada e muito linda, com muito galantes janelas e adufas, e toda era um brinco. Estavam as mesas postas em três lanços da casa, para cada convidado uma mesa muito linda e sua cadeira dourada ou prateada, e cada mesa tinha em fronte um frontal de damasco até ao chão. Nas mesas não havia toalhas nem guardanapos, assim porque as mesas são muito lindas, como porque comem tão limpamente que não têm necessidade destas coisas. Estava a fruta posta logo na borda de cada uma das mesas, toda posta em ordem, a qual era castanhas assadas e esburgadas, e nozes limpas e [d]escascadas, e cana-de-açucar limpa e feita em talhadas, e a fruta que acima dissemos que chamam líchias, grandes e pequenas, mas eram passadas. Toda esta fruta estava posta em castelinhos bem feitos, atravessada com pauzinhos muito limpos. Pelo que todas as mesas em roda, com estes castelinhos, ficavam como ornadas. Logo após a fruta estavam todas as iguarias postas em bacios finos de porcelana, todas muito bem aparadas e mui limpamente cortadas, e tudo posto em boa ordem. E ainda que iam ordens de bacios por cima doutros, todos estavam postos polidamente, de maneira que o que estava à mesa podia comer do que quisesse sem ser necessário tirar bacio nem mudá-lo.

E logo estavam dois pauzinhos dourados muito galantes para comer com eles metidos entre os dedos; usam deles a modo de tenazes, de maneira que nada do que está à mesa tocam com a mão. E ainda que comam uma porcelana de arroz com aqueles paus, a comem sem lhe[s] cair grão. E porque comem muito limpamente sem tocar com a mão no comer, não têm necessidade de toalhas sem de guardanapos. À mesa lhe[s] vem tudo cortado e mui bem preparado. Tinham também uma porcelana muito pequena dourada, que leva um bocado de vinho, e só para isto há servidor à mesa. Bebem tão pouco porque a cada bocado de comer há-de ir bocado de beber, e por isso é tão pequena a vasilha.

Há alguns chinas que criam unhas muito compridas, de meio palmo até palmo, as quais trazem muito limpas, e estas unhas lhe[s] servem em lugar dos paus para comer.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Tratado das Coisas da China”, Introd., modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Edições Cotovia, 1997)

Se chega novamente algum hóspede à casa dalgum seu amigo ou parente, se o dono da pousada não está vestido de festa, entrando o hóspede nenhuma menção nem conta faz dele até mandar trazer vestidos festivos e calçado. E depois de vestido e calçado vai-se ao hóspede e recebe-o com grandes gasalhados e cortesias, porque têm que não convém que novo hóspede e de obrigação se receba com vestidos e trajos comuns, senão que vestido de festa o agasalhem, porque nisto lhe mostra[m] que sua entrada em sua casa é dia de festa para ele[s].

Qualquer pessoa ou pessoas que chegam a qualquer casa de homem limpo, têm por costume oferecerem-lhe em uma bandeja galante uma porcelana, ou tantas quantas são as pessoas, com uma água morna a que chamam chá, que é tamalavez vermelha e mui medicinal, que eles costumam a beber, feita de um cozimento de ervas que amarga tamalavez. Com isto agasalham comummente todo género de pessoa[s] que têm algum respeito, quer conhecidos quer não, e a mim ma ofereceram muitas vezes.

São os chinas mui comedores e comem muitas iguarias. Comem a uma mesa peixe e carne, e a gente baixa às vezes guisa tudo junto. As iguarias que se hão-de comer a uma mesa todas juntas se põem à mesa, para que cada um coma do que mais lhe agradar. A gente limpa e nobre tem muita polícia em seu trato, conversação e trajo. Tem a gente comum algumas coisas grosseiras.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Tratado das Coisas da China”, Introd., modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Edições Cotovia, 1997)

Usam de cabelo comprido como mulheres, o qual trazem bem pensado e o penteiam cada dia muitas vezes. Trazem-no atado no cume da cabeça e o nó atravessado com um prego de prata comprido e delgado. Os que não são casados, a saber, mancebos solteiros, trazem por divisa apartadura na fronte mui bem feita; o barrete ficalhe[s] por cima dela, para que fique descoberta. Têm idolatria no cabelo e por isso o cria[m] tão comprido, tendo que por ele hão-de ser levados ao céu.

Os sacerdotes comuns não criam cabelo, mas andam rapados, porque dizem que não hão mister ajuda que os leve ao céu. Todavia, entre eles alguns sacerdotes do templo de  ídolos – que entre os chinas são mais reverenciados que os outros -, estes criam cabelo e trazem-no no cume da cabeça arrematado com um pau muito bem feito a modo de mão fechada, envernizado de muito bom verniz, que chamam acharão. E estes sacerdotes trazem pelote preto, trazendo os outros pelote branco.

São homens os chinas mui corteses. A cortesia comum é: cerrada a mão esquerda, fecham-na na direita e chegam e arredam amiúde as mãos ao peito, mostrando que têm um a outro fechado no coração. E a este movimento de mãos ajuntam palavras de cortesia, ainda que as palavras de gente comum é dizer um a outro, chifá mesão, que quer dizer “comestes ou não”, que todo seu bem nesta vida se resolve em comer. As cortesias particulares entre homens que tem algum primor e que há dias que se não viram são: arcados os braços, travados os dedos das mãos uns nos outros, se abaixam e estão com grandes palavras de cortesia, cada um trabalhando de dar a mão ao outro para que primeiro se alevante. E quanto mais honrados são, mais se detêm nestas cortesias. A gente honrada e nobre usa também à mesa de muitas cortesias, dando um de beber ao outro, e cada um trabalha de dar a mão ao outro no beber, porque à mesa não há outro serviço senão o do beber.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Tratado das Coisas da China”, Introd., modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Edições Cotovia, 1997)

Capítulo XIII

Dos Trajos e usos dos homens.

Ainda que os chinas comummente sejam feios, tendo olhos pequenos e rostos e narizes esmagados, e sejam desbarbados, com uns cabelinhos nas maçãs da barba, todavia se acham alguns que têm os rostos mui bem feitos e proporcionados, com olhos grandes, barbas bem postas, narizes bem feitos. Mas destes são muito poucos, e pode ser que sejam de outras nações nos tempos antigos entremetidas nos chinas, em tempo que eles comunicavam diversas gentes.

Seu trajo comum é pelotes de pregas compridos ao nosso bom modo antigo; dão volta por cima do peito, atando-se na ilharga, e todos em geral usam nos pelotes mangas muito largas. Trazem comummente pelotes pretos de linho ou de sarja fina ou grossa de diversas cores; alguns trazem pelotes de seda, muitos os usam nas festas de seda; e os regedores comummente vestem sarja fina, e nas festas usam de sedas ricas, principalmente de carmesim, o qual na terra ninguém pode trazer senão eles. A gente pobre comummente traz pelote de linho branco, porque custa pouco. Na cabeça trazem um barrete alto e redondo feito de varinhas muito finas sobretecidas de seda preta mui bem feito.

Usam de meias[s] calça[s] de pear inteiro, as quais são mui bem feitas e pespontadas. E trazem botas ou sapatos segundo a curiosidade ou possibilidade de cada um, ou de seda ou de couro. No Inverno trazem meias calças de feltro, ou grossas ou delgadas, mas o pano é feito de feltro. Também usam no Inverno de vestidos forrados de martas, principalmente ao redor do pescoço. Usam também de cabaias acolchoadas, e alguns usam de cabaias de feltro no Inverno, debaixo do pelote.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Tratado das Coisas da China”, Introd., modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Edições Cotovia, 1997)

[…]

Usam também os chinas de bonifrates, com os quais fazem representações por engenhos, como em Portugal os trouxeram alguns estrangeiros para ganharem dinheiro; e para o mesmo fim de ganhar dinheiro os usam os chinas. Criam rouxinóis e ensinam-nos a fazer representações, com diversas maneiras de vestidos de homens e de mulheres, e fazem jeitos e trejeitos muito para folgar de ver. Só este género de pássaros criam em gaiolas mui bem feitas para cantarem, e têm comummente macho e fêmea em diversas gaiolas. E para cantarem apartam o macho da fêmea, de maneira que se sintam mas não se vejam; e assim se desfaz o macho em música, e cantam todo o ano. Eu tive dois, macho e fêmea, e em Dezembro cantavam como que fora em Abril. Sustentam-nos com arroz cozido envolto em uma gema de ovo, tamalavez sobre o seco, que se fiquem enganando, parecendolhe[s] bichinhos. Disse acima que se não dava esmola nesta terra a pobres, e porque poderão alguns perguntar que remédio tinham os pobres que não podem ganhar de comer por serem entrevados, aleijados ou cegos, pareceu-me bem satisfazê-los. É coisa digna de notar que aos cegos lhe[s] ordenam vida de trabalho em que ganham de comer, que é servirem em lugar de mulas d’atafona moendo trigo. E comummente, onde há atafona, há duas, porque andando dois cegos, em cada uma um, se desenfadem em praticar um com outro, como os eu vi andaram à roda com abanos nas mãos, abanando-se e amigavelmente praticando. As cegas servem de mulheres de partido e têm aias que as enfeitam e lhe[s] põem arrebique e alvaiade e lhe arrecadam o preço de seu mau uso. Desta maneira remedeiam a vida aos cegos.

(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Tratado das Coisas da China”, Introd., modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, Edições Cotovia, 1997)

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