Vasco da Gama na História e na Literatura


IV – Vasco da Gama e Os Lusíadas

Não poderia estar ausente, num trabalho deste tipo, um capítulo dedicado aos trabalhos sobre Vasco da Gama e Luís de Camões, incluindo desde ensaios de Literatura a pequenos volumes contendo excertos de Os Lusíadas, num total de apenas 20 títulos. Curioso e particularmente interessante, embora não devesse, em rigor, estar aqui incluído, é a paródia à epopeia camoniana da autoria de J. Scarron (certamente um pseudónimo), chamada de Les Lusiades travesties: parodie en vers burlesques, grotesques et sérieux: voyage maritime et pédestre du grrrand [sic] portugais Vasco de Gama. Apesar de escrita em Francês, a obra foi impressa no Porto, em 1883. Eis o início: “Je chante le héros d’un tout petit pays,/ Les trois petits bateaux, où pressés, réunis,/ Sont cent quarante huit, serrés comme sardines,/ Mais tous forts et nervoux, pouvous de bonnes mines.”

Paulo Jorge de Sousa Pinto e Ana Fernandes Pinto. “Vasco da Gama na História e na Literatura – Ensaio Bibliográfico” In Mare Liberum, nº 16, Dezembro 1998, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 135-174

Em 1925, Luciano Pereira da Silva escrevia um importante ensaio (“O ‘roteiro’ da primeira viagem do Gama e a suposta conjuração”) que viria a afirmar de vez a versão que é hoje mais corrente e geralmente aceite acerca da primeira viagem de Vasco da Gama. O seu artigo surgiu na continuidade de trabalhos de terceiros (nomeadamente Frederico Dinis de Ayala, em Vasco da Gama: quando partiu?) que colocavam sérias reticências ou rejeitavam liminarmente o valor do relato chamado de Álvaro Velho. Estes autores apoiavam-se nas informações de Gaspar Correia e Jerónimo Osório, contra os dados veiculados por João de Barros, Castanheda e Damião de Góis, que concordam em geral com os dados do relato anónimo. Para além da data da partida da expedição, estava igualmente em discussão uma alegada revolta, ou ensaio de revolta, a bordo da armada, por alturas da passagem do Cabo da Boa Esperança, veiculada pelos dois cronistas acima indicados, que Alexandre Herculano concedera algum crédito mas que Pereira da Silva, apoiado por Franz Hümmerich, rejeitava em absoluto.

Uma obra absolutamente essencial para a primeira viagem de Vasco da Gama é o artigo de Gabriel Ferrand (de 1922, traduzido para Português pouco depois), onde pela primeira vez se identificou o piloto que o rei de Melinde cedera ao capitão-mor, e que os cronistas portugueses chamavam de “canaqua” ou “malemo canaqua”, com Ibn Madjid, cosmógrafo árabe autor de diversos roteiros e obras de náutica. Esta versão foi rapidamente aceite pelos historiadores, tendo sido posteriormente reforçada com a notícia da existência de três roteiros do mesmo piloto em Leninegrado (ou S. Petersburgo), descobertos em 1930 pelo orientalista soviético J. Kratchkovsky, mas que só viriam a ser publicados em 1958 por T. A. Chumovsky, um seu discípulo. Um deles é o célebre Roteiro de Sofala, que faz diversas referências aos Portugueses. Esta versão, acompanhada pela reprodução do roteiro, foi aceite sem reservas, por exemplo, por Costa Brochado (O piloto árabe de Vasco da Gama). Estudos posteriores viriam, no entanto, a deitar por terra esta tese, ao provar que o famoso Ibn Madjid deixara de navegar muito antes da chegada do Gama às águas do Índico, e que as referências que as suas obras fazem aos Portugueses resultam, muito provavelmente, de interpolações posteriores (cf. por exemplo Luís Albuquerque, Os Descobrimentos Portugueses, secção I).

Por fim, refira-se ainda o útil trabalho de José Pedro Machado (“Terras de além”), autor igualmente de uma boa edição do roteiro dito de Álvaro Velho, que elabora uma listagem alfabética de todos os topónimos do referido relato, com a respectiva identificação e com o devido aparato crítico e erudito.

Paulo Jorge de Sousa Pinto e Ana Fernandes Pinto. “Vasco da Gama na História e na Literatura – Ensaio Bibliográfico” In Mare Liberum, nº 16, Dezembro 1998, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 135-174

III – Trabalhos sobre navegação e náutica

Na terceira secção, num total de 55 obras e artigos, foram integrados os trabalhos de náutica e navegação, ou ainda aqueles que se dedicam especificamente aos problemas técnicos das viagens (sobretudo a primeira) e dos navios utilizados por Vasco da Gama, assim como os que seguem de perto a relação dita de Álvaro Velho. Alguns dos títulos aqui incluídos referem-se a Os Lusíadas, mas procurou-se incluir aqui apenas as obras de teor especificamente náutico, remetendo outras questões que envolvam o Poeta para a secção IV.

A reconstituição da rota da armada de Vasco da Gama, na primeira viagem, tal como é hoje aceite pela generalidade dos historiadores, ficou sobretudo a dever-se aos trabalhos de Gago Coutinho, num conjunto de ensaios e artigos que foram posteriormente reunidos, na sua maior parte, em A náutica dos Descobrimentos. Ficou célebre a polémica em que o insigne almirante se envolveu com José Maria Rodrigues, nas páginas da revista Biblos, no decorrer de meia década. Este autor afirmava, mediante a análise de várias estrofes do Canto V d’Os Lusíadas, que Camões descrevia duas rotas distintas da armada de Vasco da Gama, no Atlântico. Gago Coutinho, para além de não vislumbrar qualquer “rota dupla” na obra, arremessava ao arguente todo o peso dos seus conhecimentos de Náutica e de História para o refutar, partindo de um problema ético aparentemente menor: repugnava-lhe que Luís de Camões tivesse induzido propositadamente o leitor da epopeia em erro e confusão, por mero artifício literário, sendo conhecedor da verdadeira rota que utilizara Vasco da Gama. A polémica acabou por morrer em 1934, sendo os argumentos de Gago Coutinho aceites hoje pela generalidade dos historiadores.

Paulo Jorge de Sousa Pinto e Ana Fernandes Pinto. “Vasco da Gama na História e na Literatura – Ensaio Bibliográfico” In Mare Liberum, nº 16, Dezembro 1998, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 135-174

II – As viagens

Esta segunda secção diz respeito às fontes das duas viagens de Vasco da Gama à Índia. Trata-se de uma enumeração, bastante sumária aliás (apenas 28 registos), de edições e traduções dos relatos de ambas as viagens. No que toca à primeira, a listagem não oferece dificuldades. Trata-se da famosa relação anónima, atribuída geralmente a Álvaro Velho, que foi pela primeira vez editada por Diogo Kopke e António da Costa Paiva em 1838, e que conheceu posteriormente diversas edições e traduções. A questão torna-se bem mais complexa quando abordamos a segunda viagem, dado o conjunto de fontes associado (relato anónimo, relação calcoen, informação de Tomé Lopes, etc.). Deslindar caso a caso as obras que editam uma, duas ou mais destas fontes merecia um trabalho á parte. Do mesmo modo, optou-se por não se incluir outras fontes contemporâneas que referem as viagens do Gama (João de Barros, Castanheda, Gaspar Correia, Damião de Góis, Jerónimo Osório ou as diversas relações italianas). Para esclarecimentos complementares sobre o problema das edições das fontes de ambas as viagens de Vasco da Gama, remetemos para a obra de Luís Adão da Fonseca, que apresenta uma excelente resenha bibliográfica acerca desta questão.

Paulo Jorge de Sousa Pinto e Ana Fernandes Pinto. “Vasco da Gama na História e na Literatura – Ensaio Bibliográfico” In Mare Liberum, nº 16, Dezembro 1998, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 135-174

Alguns erros de pormenor, consagrados pela tradição e transmitidos de obra em obra, estão também presentes, como o de reproduzir a versão (tardia) de João de Barros, segundo a qual Bartolomeu Dias chamara Cabo das Tormentas à ponta Sul de África, e que fora D. João II quem o baptizara de “Da Boa Esperança” (pp. 58-59 da ed. francesa, pp. 46-47 da ed. portuguesa). Na realidade, Duarte Pacheco Pereira diz claramente no seu Esmeraldo De Situ Orbis (que a autora refere na obra) que fora o próprio Dias, que conhecia pessoalmente, a baptizar o Cabo com este último nome.

Em anexo, inclui uma cronologia (com um erro na data de 1525), um glossário e um índice onomástico. A tradução portuguesa é boa, ligeiramente manchada, no entanto, por alguma falta de cuidado, como na utilização de alguns topónimos (como “Choromândel” em vez da forma vulgar de “Coromandel”), e antropónimos (“Uolofes” em vez da forma portuguesa “Jalofos”, “Ferdinando Van Olm” em vez de “Fernão Dulmo”), a inevitável confusão entre “malaio” e “malaiala”, ao tratar do célebre léxico (p. 165) e, sobretudo, a retroversão para Português dos excertos das fontes portuguesas (de que a autora utiliza traduções francesas), bem visível no caso do relato chamado de Álvaro Velho, em vez de buscar os originais.

Por fim, temos o trabalho de Sanjay Subrahmanyam, natural de Delhi, formado pela respectiva universidade e actualmente Directeur d’études na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Obra menos consensual e mais polémica do que as anteriores, The Career and Legend of Vasco da Gama é mais um estudo de Subrahmanyam nos meandros da Expansão Portuguesa na Ásia, arriscando desta vez uma incursão directa numa figura de primeiro plano do imaginário português. Em vez de amenizar este possível foco de turbulência, esquivando-se a tratar directamente do mito de Vasco da Gama, o autor, pelo contrário, encara-o de frente, elevando as questões ligadas à mitificação do navegador de Sines a temas de primeiro plano da obra. Tal intenção é, aliás, declarada no prefácio: aqui, revela o objectivo de traçar a carreira e o contexto social de Vasco da Gama, analisando os mecanismos que levaram, mediante a exploração do potencial de lenda que o seu feito inevitavelmente continha, à transformação de um obscuro fidalgo alentejano no Grande Argonauta.

O livro inicia-se, curiosamente, não com as origens sociais de Vasco da Gama, mas sim com a ópera de Meyerbeer e Scribe L’Africaine, escrita em 1865. A partir da história veiculada na peça e das suas premissas, Subrahmanyam parte para um primeiro esboço da lenda de Vasco da Gama, que será retocado ao longo da biografia propriamente dita, para culminar no último capítulo, intitulado “Os Julgamentos da Posteridade”, onde procede à reavaliação da figura, da sua carreira e do seu mito. Aliás, um dos pontos de maior interesse do livro é precisamente o tratamento dado a um conjunto apreciável de autores, obras e opúsculos dedicados, desde o Centenário de Camões em 1880, à figura do Gama. O trabalho não destoa da qualidade de obras anteriores do autor, mau-grado alguma insegurança ao tratar questões de História de Portugal (já visível, aliás, na obra anterior, intitulada O Império Asiático Português) e, sobretudo, uma escrita pouco fluida, a que não será alheio um aparato erudito por vezes pesado e frequentes e longas citações de documentação.

Paulo Jorge de Sousa Pinto e Ana Fernandes Pinto. “Vasco da Gama na História e na Literatura – Ensaio Bibliográfico” In Mare Liberum, nº 16, Dezembro 1998, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 135-174

A aproximação do corrente ano de 1998 trouxe uma nova vaga de estudos e ensaios sobre Vasco da Gama. Há três obras capitais que merecem a maior atenção, constituindo, cada uma à sua maneira, marcos na historiografia sobre o navegador: os trabalhos de Adão da Fonseca, Geneviève Bouchon e Sanjay Subrahmanyam.

Comecemos pela primeira. O autor é um historiador de renome e de bibliografia consagrada sobre a época, nomeadamente acerca da figura de Bartolomeu Dias. Profusamente ilustrada, numa verdadeira edição de luxo patrocinada pela Expo ’98, a obra não escapa, contudo, a uma certa convencionalidade no tratamento do tema. Divide-se em três partes, aliás, em sintonia com o título: “O Homem”, “A Viagem” (“a viagem de 1497”; “a viagem de 1502-1503”) e “A Época” (“a Índia que Vasco da Gama pensa encontrar”; “a Índia que Vasco da Gama encontra”; “Vasco da Gama e a política do seu tempo”). O discurso é meticuloso e pormenorizado, embora frequentemente descritivo, não arriscando grandes rasgos interpretativos nem tentativas de explicação de algumas questões ainda nebulosas, como o período de arrefecimento das relações entre o navegador e D. Manuel. Há alguns deslizes, como o de confundir a língua malaia com a malaiala (do sul da Índia), ao tratar do pequeno léxico, anexo ao relato da primeira viagem, dito de Álvaro Velho (p. 179). Embora o erro se possa imputar a F. Hümmerich, de onde foi retirada a informação, não deixa de revelar falta de cuidado. O capítulo dedicado à Viagem é rigoroso e seguro, com quadros comparativos da armada de Vasco da Gama e a de Cabral, listas de tripulantes e de mantimentos e, finalmente, a calendarização pormenorizada das duas viagens efectuadas pelo Gama. Já a terceira parte revela um menor à-vontade, sobretudo quando traça o quadro do mundo do Índico nos finais do século XV, escorando-se então em G. Bouchon, S. Subrahmanyam e C. R. Boxer. Um epílogo-balanço completa a obra, devidamente ilustrado com uma citação de Jean-Paul Sartre. Em apêndice, apresenta o relato dito de Álvaro Velho. A bibliografia, analítica e comentada, é muito útil; lamente-se apenas a falta de um índice remissivo.

Segue-se a obra de Geneviève Bouchon. Trata-se de um trabalho que em nada desmerece o longo currículo da autora, Directeur de recherche do Centre National de la Recherche Scientifique de Paris, especialista de História do Índico e responsável, a par de outros nomes, pelo relançamento dos estudos sobre a expansão portuguesa na Ásia. A estrutura do livro não apresenta novidades: inicia-se com os antecedentes e o enquadramento da biografia de Vasco da Gama e termina com a morte do protagonista. O aparato crítico, no que toca a notas de rodapé, é mínimo e as preocupações de erudição, quase inexistentes. A obra é escrita em tom desenvolto e ritmado, quase narrativo, mas é dotada de um grande rigor, conseguindo dosear o enquadramento histórico com o pormenor explicativo, os dados aceites pela historiografia com o campo da mera hipótese. Numa palavra, lê-se num fôlego, demonstrando uma grande segurança no que toca às questões de história asiática e um notável cuidado e contenção quando aborda problemas em que se sente menos à vontade, nomeadamente as referentes à História de Portugal. Aqui chega a cometer alguns deslizes, o mais flagrante dos quais será porventura o de afirmar, ao falar da alteração da conjuntura política após a morte de D. João II e os que denegriam o defunto monarca, que este apenas explorara costas desertas, com expedições que pouco mais teriam rendido que algum cobre, marfim e escravos (p. 97 da ed. francesa, p. 78 da ed. portuguesa). E o ouro da Mina?

Paulo Jorge de Sousa Pinto e Ana Fernandes Pinto. “Vasco da Gama na História e na Literatura – Ensaio Bibliográfico” In Mare Liberum, nº 16, Dezembro 1998, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 135-174

 

Passados quase cem anos sobre a obra pioneira de Teixeira de Aragão, pouco mais se avançou no que toca à descoberta de nova documentação que permita iluminar a biografia do navegador, nomeadamente a sua juventude. Em 1990, Isaías da Rosa Pereira publicou, pela mão da Academia Portuguesa de História, documentação do cabido da Sé de Évora que demonstra o que já outros autores, como Teixeira de Aragão e o Visconde de Sanches Baena, haviam confusamente mencionado: que a 5 de Novembro de 1480 vários filhos de Estêvão da Gama receberam ordens de tonsura e que o futuro descobridor da Índia era um deles, mais precisamente o segundo. Um outro Vasco da Gama recebera igualmente a tonsura, na realidade o filho mais velho, mas ilegítimo, de Estêvão da Gama. Assim se explica o título da obra, perfeitamente escusado, já que a interrogação (Qual dos dois da Gama foi à Índia em 1497?), para além de não fazer qualquer sentido, nem sequer é ventilada pelo autor no decorrer do trabalho.

Exceptuando o biénio de 1997/98, poucos trabalhos acerca do navegador vieram a lume nos últimos anos. Um deles (da autoria do Marquês de Abrantes) aborda uma questão deveras interessante, a da ascensão social dos Gama. Contudo, acusa algumas insuficiências, a menor das quais não será certamente a ausência da mais elementar bibliografia, certamente mais útil ao leitor que a listagem das obras do autor, incluída no final do artigo.

Em 1995, R. V. Duchac, Professor de Filosofia em Marselha, desconhecido, tanto quanto foi possível apurar, nas lides da História dos Descobrimentos, publica um curioso trabalho chamado Vasco da Gama – L’orgueil et la blessure. Oscilando entre a ficção e o ensaio histórico, o autor utiliza uma personagem bíblica, o demónio Asmodeu, para narrar uma viagem a Lisboa (seguindo aparentemente os passos que o próprio terá percorrido) com o objectivo de escrever uma biografia do Gama. Introduz diversos elementos de reflexão, desde as peripécias da pesquisa bibliográfica (tanto nos alfarrabistas da cidade como na Biblioteca Nacional) a várias questões subjacentes à biografia do navegador: o estado actual dos descendentes do Gama, as relações deste com o seu irmão Paulo, o papel do pai (Estêvão da Gama), o problema da nomeação por D. João II para comandar a viagem, a trasladação dos restos mortais na década de 1880, entre outras. Embora Duchac não consiga escapar a uma certa abordagem “turística” a Lisboa e a Portugal, demonstre alguma ingenuidade, no que toca sobretudo ao tratamento da bibliografia e das fontes, que manifestamente conhece mal, e acabe por não distinguir exactamente onde acaba a História e começa a ficção, a obra não deixa de merecer atenção, por introduzir reflexões acerca do mito de Vasco da Gama e constituir um interessante ensaio sobre a personagem, saído da pena de um não-historiador.

Paulo Jorge de Sousa Pinto e Ana Fernandes Pinto. “Vasco da Gama na História e na Literatura – Ensaio Bibliográfico” In Mare Liberum, nº 16, Dezembro 1998, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 135-174

A biografia do navegador português foi gradualmente explorada ao longo das décadas seguintes, no período que medeia os centenários da sua morte (1924) e do seu nascimento (1969). Foi editado um número considerável de trabalhos, o que permitiu um melhor conhecimento da vida, das acções e da época de Vasco da Gama. Além-fronteiras, o interesse crescente pela figura, como de um modo geral pela expansão portuguesa, traduziu-se sobretudo em obras de divulgação (cf. VII), embora alguns trabalhos mereçam aqui uma especial menção, como os de Jean-Paul Alaux (1931), Albert Tonneaux (1948) e Henry Hart (1950), que são, de algum modo, paradigmáticas. O primeiro é autor de um livro de cariz monumental, ilustrado e próximo das obras de divulgação, que encontra no trabalho de Tonneaux um tratamento diametralmente oposto: erudito e crítico, apesar da sua abordagem generalista. Sea Road to the Indies, de Hart, é um pouco a síntese de ambos, no que toca ao modo de análise dos temas e das questões. Trata-se de uma obra geral mas bem documentada, assente nas fontes portuguesas, procedendo o autor ao enquadramento da figura de Vasco da Gama na sua época. A sua intenção é, como afirma, divulgar a biografia do navegador e os seus feitos, assim como preencher o vazio informativo (certamente em obras de língua inglesa) sobre a contribuição dos portugueses para o descobrimento do Mundo.

Em Portugal, o mais importante estudo sobre a figura em causa viria a surgir em 1973, pelo punho de Armando Cortesão. Uma espécie de abordagem hiperbólica de várias teses presentes na historiografia portuguesa da época, como a célebre “política do sigilo” desenvolvida sobretudo por Jaime Cortesão, a obra de A. Cortesão gira em torno de vários vazios e dados intrigantes nas fontes e na conjuntura da época, nomeadamente no período nebuloso que medeia a expedição de Bartolomeu Dias e a viagem do Gama. Segundo o autor, estamos perante um verdadeiro “mistério”, de que Vasco da Gama é o protagonista. Partindo da discussão do significado da palavra “descobrimento” e passando pelo Tratado de Tordesilhas e pela política de D. João II, Cortesão conduz o seu raciocínio no sentido de demonstrar que o futuro Conde da Vidigueira terá comandado uma ou várias expedições para além do Rio do Infante (limite da viagem de Bartolomeu Dias), algures na década de 1490. Já na época em que a obra foi escrita, várias das premissas em que se apoia O Mistério de Vasco da Gama foram postas em causa, como as informações respeitantes ao célebre Ibn Madjid.

Paulo Jorge de Sousa Pinto e Ana Fernandes Pinto. “Vasco da Gama na História e na Literatura – Ensaio Bibliográfico” In Mare Liberum, nº 16, Dezembro 1998, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 135-174

I – Estudos e biografias de Vasco da Gama

Com um total de 99 títulos, é certamente a categoria mais genérica e mais vasta, abarcando desde pequenos trabalhos de investigação e artigos de enciclopédia até às grandes biografias. Procurou-se remeter para a secção VII todos os trabalhos meramente ilustrativos ou de simples divulgação. Há, evidentemente, obras de valor muito desigual, mas é aqui que se encontram os principais estudos sobre Vasco da Gama. O mais antigo, que nos pode parecer hoje de valor limitado, é o do Visconde de Santarém. Trata-se de um pequeno opúsculo datado de 1839, extraído da Encyclopédie des Gens du Monde, (tomo XII, 1ª pte., p. 87 e segs.), no qual o primeiro grande vulto da historiografia dos Descobrimentos Portugueses traça o perfil do navegador, submetendo ao seu método positivista as fontes cronísticas então disponíveis e o relato chamado de Álvaro Velho, publicado no ano anterior.

O ano de 1880, com o centenário da morte de Camões e a trasladação dos restos de Vasco da Gama para Lisboa, marca uma nova fase de trabalhos acerca do capitão, ainda muito marcados pela figura do Poeta e da sua epopeia, como se verá abaixo. Só em 1898 é que o feito do Gama seria celebrado, motivando a edição de um grande conjunto de trabalhos. O mais importante dos quais terá sido talvez o de Teixeira de Aragão, com o nome de Vasco da Gama e a Vidigueira: estudo histórico, que constitui a primeira grande biografia do navegador, apoiada por um apêndice documental. Trata-se, na verdade, da 3ª edição, revista e aumentada, de uma obra anterior, iniciada em 1871 com o nome de D. Vasco da Gama e a vila da Vidigueira. Por esta altura, estalam os primeiros debates: um deles ocorreria entre o Visconde de Sanches Baena e António Zeferino Cândido, tendo este saído na defesa do que considerava ser a “honra” de Vasco da Gama, alegadamente ofendida pelos esforços do Visconde em denegrir a sua imagem em relação a Pedro Álvares Cabral.

Em 1902, uma descendente do almirante da Índia, D. Maria Teles da Gama, edita Le comte amiral D. Vasco da Gama, com a intenção clara de louvar os feitos do navegador e de traçar o percurso da Casa da Vidigueira até ao momento. Mau-grado a sua importância na época, é uma obra de valor desigual e de estrutura assaz estranha e desiquilibrada, com uma 1ª parte onde é traçada a biografia de Vasco da Gama e a História de Portugal até à época dos Filipes, para saltar subitamente para a trasladação das ossadas do conde-almirante, na década de 1880. Uma 2ª parte descreve as relações com a Etiópia no século XVI; uma 3ª relata a descendência de Vasco da Gama até ao presente, com um apêndice documental, desde o século XVI ao XIX; por fim, uma 4ª parte, que consta do relato da primeira viagem, chamado de Álvaro Velho.

Paulo Jorge de Sousa Pinto e Ana Fernandes Pinto. “Vasco da Gama na História e na Literatura – Ensaio Bibliográfico” In Mare Liberum, nº 16, Dezembro 1998, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 135-174

 

Vasco da Gama na História e na Literatura – Ensaio Bibliográfico

Elaborar uma bibliografia, ainda que sumária e sem pretensões de exaustão, acerca de uma personagem com a amplitude de Vasco da Gama é uma tarefa ingrata, um trabalho quase tão inglório como escrever uma bibliografia camoniana. Quem a tal se dedica não escapa a um certo sentimento de frustração, que resulta da impressão de deixar um trabalho inacabado e desactualizado. A tentação de adiar indefinidamente o encerramento das pesquisas e a pretensão de abarcar todas as obras alguma vez escritas sobre a personagem são riscos e enganos inevitáveis. Contudo, passados cinco séculos desde a viagem que inaugurou a grande via marítima do Velho Continente, e após diversas efemérides ligadas directa ou indirectamente a Vasco da Gama, a verdade é que ainda não foi elaborada, de que tenhamos conhecimento, uma listagem bibliográfica que abarque, a par dos grandes trabalhos de investigação, frequentemente citados e bem conhecidos, outras obras que ao longo do tempo se escreveram a propósito do navegador de Sines, sob as mais variadas inspirações e temáticas. As bibliografias existentes são fragmentárias ou de âmbito limitado, como as elaboradas por Ernesto Dornato ou Anabela T. C. da Silva.

O que se apresenta nas páginas seguintes é a compilação, tão completa quanto possível, de um volume de cerca de três centenas e meia de títulos, incluindo traduções, acerca do almirante das Índias, distribuídos por secções. Tal volume, apesar de constituir certamente uma pálida amostra dos milhares de escritos que se terão alguma vez redigido acerca de Vasco da Gama, revela o que de disponível existe ao leitor, entre bibliotecas portuguesas, livrarias e alguns sites da Internet. A divisão em secções não escapa a alguma artificialidade e, em boa verdade, a alguma injustiça, já que o critério de separação dos trabalhos é muitas vezes discutível e, quase sempre, fluido. O mais cómodo seria agrupar as obras segundo a cronologia: por exemplo, juntar as publicações que saíram em 1898, aquando do 4º centenário. Porém, isto obrigaria a aglutinar os estudos de Teixeira de Aragão com os folhetos comemorativos daquela data, forçando a adopção de um critério igual para o corrente biénio de 1997/98: arrumar na mesma secção as obras de Adão da Fonseca ou Sanjay Subrahmanyam com o número da revista infantil Na Crista da Onda dedicada ao navegador. Optou-se, assim, por tentar arrumar a bibliografia diversa em categorias, em número total de sete. Sobre cada uma delas se mencionam alguns dados e se comentam, em grau variável, algumas das obras mais significativas.

Paulo Jorge de Sousa Pinto e Ana Fernandes Pinto. “Vasco da Gama na História e na Literatura – Ensaio Bibliográfico” In Mare Liberum, nº 16, Dezembro 1998, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 135-174

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