Viagens Pêro Covilhã


De qualquer modo, Vasco da Gama leva instruções sobre o que deve fazer. Damião de Góis alude a um regimento a propósito da navegação atlântica depois de Cabo Verde (já no local próprio o referi), e volta a citá-lo no momento em que relata a passagem da armada na costa do Natal: «No dia 25 de Dezembro», escreve, «acharam que tinham navegado setenta léguas a leste, que era o rumo a que haviam de ir buscar a Índia, como o levava Vasco da Gama por regimento.»

De facto, é impossível optar por uma resposta. Não se sabe que tipo de informação teria Pêro da Covilhã enviado a D. João II; nem sequer se sabe se chegou alguma ao conhecimento do monarca. Vasco da Gama tem instruções sobre o que deve fazer, leva um regimento, mas não se sabe nada sobre o seu conteúdo. Finalmente, não se sabe se Álvaro Velho teria acesso a toda a informação de que dispunha Vasco da Gama: que saberia ele, realmente, do destino da viagem, para além da informação vaga de que se dirigiam à Índia? Importa reconhecer que o esclarecimento deste assunto terá de voltar ao princípio.

“Vasco da Gama – O Homem, A Viagem, A Época”, Luís Adão da Fonseca, Edição do Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa de 1998 e da Comissão de Coordenação da Região do Alentejo, 1997, p. 156

Há, aliás, um outro elemento, um pouco perturbador. De facto, o relato de Álvaro Velho só fala de Calecute depois da frota ter estado em Melinde: «À terça-feira, que foram vinte e quatro do dito mês, nos partimos daqui, com o piloto que nos el-rei deu, para uma cidade que se chama Calecute, da qual cidade el-rei tinha notícia.»

Quererá isto dizer que as crónicas, quando dizem que Vasco da Gama tem, desde o princípio, o objectivo de se dirigir a Calecute, estão a projectar, para a fase anterior a Melinde, a informação que só nesta cidade lhe teria sido dada? É possível. Mas nada prova que, pela notícia transcrita do «diário» de Vasco da Gama, se demonstre que só então tiveram conhecimento da existência de Calecute, embora assim possa ser interpretado. Aliás, o autor do «diário» poderia ignorar o destino da frota, só conhecido de Vasco da Gama e dos capitães…

A circunstância de que não tenha chegado ao nosso conhecimento o texto do relatório de Pêro da Covilhã não significa necessariamente, nem que tal relatório não foi recebido, nem que, tendo-o sido, foi silenciado pela política do sigilo (como pensa Jaime Cortesão). Como Banha de Andrade já chamou a atenção, desaparecimento semelhante ocorreu em relação aos papéis de Bartolomeu Dias, e desses temos a certeza que chegaram e que foram lidos e estudados; até o próprio Colombo os viu. Aliás, é óbvio que existe uma mesma intencionalidade nas três expedições enviadas ao Índico pelo rei de Portugal nos finais do século XV: a de Pêro da Covilhã, a de Bartolomeu Dias e, finalmente, a de Vasco da Gama.

“Vasco da Gama – O Homem, A Viagem, A Época”, Luís Adão da Fonseca, Edição do Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa de 1998 e da Comissão de Coordenação da Região do Alentejo, 1997, pp. 155 e 156

Começo por chamar a atenção para os factos. São, fundamentalmente, quatro.

Os dois primeiros dizem respeito a Pêro da Covilhã. Em primeiro lugar, este é enviado ao Oriente, em 1487, como se lê nas crónicas, com o objectivo de descobrir o Preste João e de conhecer as rotas das especiarias. Depois de ter viajado pela região, nos finais de 1490 ou princípios de 1491, o mesmo envia ao rei de Portugal um documento com as informações obtidas. Em segundo lugar, no Cairo, Pêro da Covilhã recebe instruções para, no Índico, se dirigir a Ormuz, e aí se informar das coisas da Índia, e que procurasse o Preste João.

Os outros dois dizem respeito à viagem de Vasco da Gama. Quando, em Moçambique, um mouro pergunta aos portugueses onde se dirigem, Vasco da Gama responde – e cito palavras de Barros – «que sua vinda àquele porto era passagem para a Índia, fazer alguns negócios a que el-Rei, seu senhor, o enviava, principalmente com el-Rei de Calecute». Finalmente, em diversos momentos da viagem, os portugueses demonstram possuir um grande desconhecimento das realidades sociais e económicas do comércio da região.

No conjunto dos quatro aspectos indicados, os dois primeiros tiveram certamente lugar (não existem fundamentos para duvidar da sua existência), e o terceiro parece revelar um conhecimento, pelo menos nas suas linhas gerais, das grandes redes de comércio de especiarias no Índico (pôr em causa esta afirmação significaria admitir que a ordem dada a Vasco da Gama de se dirigir a Calecute resulta da pura casualidade, o que é totalmente absurdo). Em face disto, não custa a admitir que tal conhecimento não tenha sido alheio às informações enviadas por Pêro da Covilhã.

“Vasco da Gama – O Homem, A Viagem, A Época”, Luís Adão da Fonseca, Edição do Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa de 1998 e da Comissão de Coordenação da Região do Alentejo, 1997, pp. 154 e 155

Para o caso presente, não interessa tanto conhecer os pormenores da aventura de Pêro da Covilhã, quanto o saber se teriam chegado ao conhecimento do rei de Portugal as informações por este escudeiro obtidas, no seu périplo pelo Oriente. Sabe-se que, quando regressava a Portugal, Pêro da Covilhã terá encontrado no Cairo um mensageiro de D. João II que lhe transmitiu a ordem real de se dirigir para sul, em demanda dos reinos do Preste João. O que ele fez, não sem antes ter enviado para Lisboa um extenso relatório do que ele tinha visto e sabido. Segundo o cronista Castanheda, Pêro da Covilhã «escreveu a El-Rei tudo o que tinha sabido do Preste, e onde era seu senhorio, e assim o que vira da Índia e de Ormuz, e a carregação que se fazia em Calecute de especiaria, droga e pedraria, e que Calecute e Cananor estavam na costa, e podia-se navegar para lá pela sua costa e mar da Guiné, indo demandar Sofala, donde podiam ir tomar a costa de Calecute», embora declare não ter a certeza de que D. João II recebeu tais informações.

A questão fundamental é a seguinte: Teria tal texto chegado às mãos de D. João II? E, em caso afirmativo, teria o seu conteúdo sido transmitido a Vasco da Gama?

“Vasco da Gama – O Homem, A Viagem, A Época”, Luís Adão da Fonseca, Edição do Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa de 1998 e da Comissão de Coordenação da Região do Alentejo, 1997, pp. 151 e 154

A referência ao Preste João não pode deixar de recordar a decisão tomada, anos antes, por D. João II, de proceder ao reconhecimento terrestre daquela região. Terão existido outros emissários, mas certamente ter-se-ão perdido. Pelo contrário, a expedição enviada em 1487 – no mesmo ano em que Bartolomeu Dias parte para a viagem marítima em direcção ao cabo da Boa Esperança -, terá deixado abundantes notícias.

Tendo saído de Portugal, em Maio de 1487, Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva dirigem-se às partes orientais. Castanheda escreve que deveriam «descobrir e saber do Preste João, e onde achavam a canela e a especiaria que vai da Índia a Veneza por terra de mouros». A versão de Barros não é muito diferente. Com independência da região exacta para onde se terão dirigido, é evidente que esta viagem – tendo como objectivo obter informações – se integra no plano português de atingir a Índia. Não pode de modo algum ser desligada da outra viagem que – por via marítima – realiza esse mesmo ano Bartolomeu Dias. Terá sido longa a peregrinação que terá levado Pêro da Covilhã até Rodes e Alexandria, Cairo e Adém, Cananor e Calecute, Goa e Ormuz, Sofala, Melinde, Mombaça e Quíloa, e daí ao Cairo, onde terá chegado entre finais de 1490 e princípios de 1491.

“Vasco da Gama – O Homem, A Viagem, A Época”, Luís Adão da Fonseca, Edição do Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa de 1998 e da Comissão de Coordenação da Região do Alentejo, 1997, p. 151 

Estava posto o problema, que devia resolver parcialmente Bartolomeu Dias, totalmente Vasco da Gama. Compreende-se, pois, todo o interesse que havia, em obter informações sobre este ponto especial e capital. Julgava-se então, que a Etiópia se estendia – como diz Barrsos – “té o mar do Sul”. Os naturais da terra deviam conhecer o modo por que terminava a África. Ali na Etiópia, ou talvez na Índia, devia saber-se alguma coisa sobre a tão importante passagem – essa passagem, dada a qual os planos de D. João II podiam ser uma realidade, sem a qual seriam sempre um sonho. Nada mais natural, portanto, di que a recomendação, feita – segundo Ramusio – aos exploradores: indagar se havia alguma notícia che si possa passare ne mari di ponente. […]

Tais seriam, segundo todas as probabilidades, as instruções dadas aos dois escudeiros: que um deles se dirigisse directamente ao rei cristão da Etiópia; que o outro procurasse passar à Índia, e estudasse as condições do comércio oriental; que ambos colhessem por onde podessem informações sobre o modo e sítio de comunicação dos mares do levante com os mares do ocidente.

Pelos primeiros dias do mês de Maio todos os preparativos estavam terminados, e os dois escudeiros munidos da sua carta de marear e das suas instruções secretas. No dia 7 daquele mês de Maio do ano de 1487, D. João II deu-lhes a última audiência em Santarém, à qual assistia o duque de Beja. O rei entregou aos viajantes quatrocentos cruzados, tirados do cofre das suas propriedades de Almeirim, e também uma carta de crédito “pera todas as terras e províncias do mundo”. Ao despedir-se deitou-lhes a sua bênção.

“Viagens de Pêro da Covilhã”, Conde Ficalho, ed. Viagens Alma Azul, Outubro 2004

Pondo de parte a questão das problemáticas e antiquíssimas circum-navegações de África, admitindo – e admitindo sem inspiração de falso patriotismo, simplesmente porque nos parece exacto – que a parte austral do continente foi desconhecida até à viagem de Bartolomeu Dias, fica, no entanto, o facto incontestável de que se acreditava na possibilidade da circum-navegação. A geografia sistemática dos antigos, e depois a dos árabes e da Idade Média, admitia em geral a hipótese de um mar envolvente, e portanto a de uma comunicação do oceano Atlântico com o oceano Índico. A dúvida estava no modo porque se estabelecia essa comunicação; que podia fazer-se pelo mar livre e desembaraçado, ou talvez por canais estreitos de difícil ou impossível navegação, como dizia, por exemplo, o geógrafo árabe Albyruny.

Não havia pois a certeza, mas havia a esperança de poder passar. Havia esta esperança em Portugal já no tempo do infante D. Henrique, e com mais razão no de D. João II. Quando, a partir do cabo das Palmas, a costa africana começou a correr no rumo de leste, imaginou-se ser ali a passagem, o que estava de acordo com as opiniões de alguns antigos cosmógrafos, os quais limitavam a África pelo sul logo nas proximidades do equador. Depois, passado o golfo de Guiné, a costa voltou a correr norte sul, e ficou-se na dúvida acerca da sua terminação.

“Viagens de Pêro da Covilhã”, Conde Ficalho, ed. Viagens Alma Azul, Outubro 2004

Restava o outro lado da missão – procurar o caminho por onde vinham as especiarias a Veneza, Génova e outros portos da Europa, e remontar até à origem dessas especiarias. Para isso era necessário dirigir-se a um dos portos do Mediterrâneo oriental, onde as especiarias embarcavam para Veneza, por exemplo, Alexandria, penetrar ali nas terras sujeitas aos mouros ou muçulmanos, e subir depois pelo trilho dos comércio, até onde esse trilho levasse. Talvez à Índia, talvez mais longe. Tratava-se unicamente por todo esse caminho, de saber ver, e de saber fixar na memória ou nas notas o que se havia visto. Era impossível nesta parte formular um plano, ou marcar um itinerário. Tudo por ali devia ser novo e imprevisto, pelo menos para os portugueses; e o êxito dependia da prontidão das resoluções, tomadas à medida e feição dos acontecimentos. Esta parte da missão ia mais especialmente, segundo julgamos, confiada a Pêro da Covilhã; e depois veremos com quanta perspicácia e persistência dela se desempenhou.

“Viagens de Pêro da Covilhã”, Conde Ficalho, ed. Viagens Alma Azul, Outubro 2004

De tudo isto, podemos, me parece, concluir com segurança, contra a opinião de Damião de Góis, do padre Teles, de Ludolf, do padre Kircher e de vários outros, que Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva não encontraram casualmente na África o que deviam procurar na Ásia; mas pelo contrário saíram já de Portugal – pelo menos um deles – expressamente enviados à Etiópia.

Não quero com isto dizer, que em Portugal se soubesse então muito nitidamente o que era a Etiópia, ou se conhecessem os seus limites. Aquele nome fora sempre – como dissemos já – e conservava-se ainda muito vago. Podia pois facilmente imaginar-se, que o rei da Etiópia ou Preste João exercesse algum domínio, ou pelo menos alguma influência na Índia. Sobre todos estes pontos se deviam ter ideias confusas, e em grande parte erradas; mas, em todo o caso, admitia-se, que o Preste João era um rei da África oriental, soberano dos conhecidos padres abexins.

A este rei da Abissínia ia directamente dirigido um dos escudeiros de D. João II, segundo parece Afonso de Paiva.

“Viagens de Pêro da Covilhã”, Conde Ficalho, ed. Viagens Alma Azul, Outubro 2004

As terras do Oriente haviam sido um dos sonhos constantes de D. João II, que pensou incessantemente no engrandecimento do seu país; e, se não foi um bom homem, foi inquestionavelmente um grande rei. Penetrar na Índia, dominar ali se tanto fosse possível, atrair para Portugal o comércio, que enriquecia Génova, Veneza e todo o litoral mediterrânico, tudo o que depois se realizou, ou quase realizou, o seu sucessor, estava já mais ou menos nitidamente formulado no seu alto espírito, mais ou menos preparado pela sua acção persistente e hábil. D. João II havia semeado o que D. Manuel colheu; e a felicidade do felicíssimo sucessor representa simplesmente em muitos pontos a habilidade de quem o precedeu, e lhe abriu, ou pelo menos indicou os caminhos a seguir.

A este plano geral correspondiam as duas faces da missão, confiada agora aos seus exploradores – procurar os países donde vinham as especiarias a Veneza pela terra dos mouros, procurar o Preste, o grande rei cristão do Oriente. E no Preste, queria ele encontrar, não já, como na Idade Média, um aliado salvador contra o islamismo; mas simplesmente uma porta aberta para a expansão de Portugal, um meio de penetrar na Índia, tão desejada e ainda tão misteriosa. […]

“Viagens de Pêro da Covilhã”, Conde Ficalho, ed. Viagens Alma Azul, Outubro 2004

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