Capítulo XXIX
Da cidade e reino de Caraemite, e das grandes coisas que nela vi, e dos trabalhos que aqui passei. Caraemite é uma cidade, como cabeça de reino, mui notável em aquelas partes: é de grande comarca. Situada junto do rio Tigre para a banda do norte, cercada de mui notáveis muros e barbacãs e edifícios de grande admiração. Os muros são mui altos e mui largos, de cantaria e torrejados de muito altas e Formosas torres, e todos ainda mui inteiros e sãos. Disseram-me que fora dos gregos. As casas de dentro não são da maneira dos muros, e são edificadas de edifícios modernos de taipas francesas que agora usam os mouros. Somente têm igrejas sem telhados e campanários, onde parece que estavam sinos em algumas partes delas. Nasce dentro dela a uma parte uma fonte mui abundante de água, que corre um bom ribeiro que a atravessa, em que há muitas casas de moinhos e banhos. Há dentro grandes pomares de todas as árvores de fruta como em estas partes. Será de quatro mil vizinhos, todos Cristãos Jacobitas e Nestoris, e outros de outro costume, que se chamam Dustimaria: que quer dizer em nossa língua amadores de Santa Maria, todos gentes brancas. Falam língua arábia, e assim há turcos e doutras nações. É senhoreada pelo Grão-Turco, onde tem um Paxá por governador dela, com grande guarnição de gente de pé, que eles chamam janízaros: espingadeiros. E são escravos do Grão-Turco, filhos de Cristãos, dos reinos que ora possui por nossos pecados […].
(via “História e Antologia da Literatura Portuguesa – Século XVI – Literatura de Viagens – II” – Fundação Calouste Gulbenkian, Boletim nº 23, Dezembro de 2002 – a partir de “Itinerário: em que se contém como da Índia veio por terra a estes Reinos de Portugal” (1560), Estampa, 1980)