Outubro 2009


É claro que o Brasil vingou-se. Perante a vil tristeza que se apossou do império da Índia e do sonho de Albuquerque, afirmou-se em toda a sua pujança e a sua glória como uma das mais portentosas pátrias do Universo. De mais pujante alegria e rutilante cor. De mais abrangente espaço e potencial riqueza.

Seria petulância pretender que fomos só nós que o fizemos. Mas debalde se nos recusará a glória de o termos começado e ajudado a fazer.

E mesmo que não seja verdade que lhe concedemos de mão beijada a independência – como alguns sem verdade pretendem – também não é mentira que não resistimos a conceder-lha até ao limite da nossa capacidade de retardá-la.

Tivemos, nesse então, impulsos de lucidez que nos faltaram em relação ao fim da nossa presença na Índia e depois em África. Portugal amava apaixonadamente o Brasil. Ainda ama. Mas Portugal e o Brasil amavam ainda mais o espírito libertador das revoluções americana, francesa e liberal. O vintismo impregnava os espíritos. E, por mais que isso doa aos detractores do papel de Portugal, foi um Príncipe Português que soltou o célebre grito do Ipyranga. Conquistaram-no patriotas brasileiros? Em grande medida é isso verdade. Mas foi ele que o gritou. E a independência do Brasil nasceu desse grito.

“As Comemorações dos 500 Anos do Achamento do Brasil na Assembleia da República”, intervenção do Presidente da Assembleia da República, António Almeida Santos, na sessão solene de boas-vindas ao Presidente da República do Brasil, 8 de Março de 2000, edição da Assembleia da República, 2000, pp. 11 a 15

O nome era conhecido. A personalidade do descobridor não tanto!

Mas não no-lo descrevem com cópia de pormenores o Pêro Vaz de Caminha, na parte relativa ao achamento, e o Piloto Anónimo, na parte que diz respeito ao prosseguimento da viagem até à Índia e regresso, após ter lançado as primeiras bases do nosso comércio com o Oriente?

Sim e não. Descrevem as suas determinações, as suas cautelas, os seus ardis, a sua tolerância, a sua ira quando em Calecut foi precisa violência e foi precisa coragem. Mas não os seus antecedentes, a sua personalidade, o que veio a saber-se depois. As pazadas de ingratidão e esquecimento sobre ele lançadas fizeram o resto.

Cinquenta anos depois, Camões, o genial cantor da nossa gesta de quinhentos, incensa o Infante e o Gama, exalta o Albuquerque e o Magalhães, tantos outros. Sobre Cabral, nem um verso a registar o seu nome. De Lisboa ao Japão e a Timor, não há lugar que não refira ou mesmo descreva. Sobre o depois Brasil, só ao fechar o pano do seu imortal poema assim avaramente se lhe refere: «Mas cá onde mais alarga ali tereis / Parte também que o pau vermelho nota. / De Santa Cruz o nome lhe poreis / Descobri-la-á a primeira vossa frota».

O próprio Fernando Pessoa, que na sua Mensagem quase não deixa grande figura histórica sem poema, e multiplica os que dedica ao «louco» rei Sebastião, esquece Cabral e a descoberta do Brasil.

“As Comemorações dos 500 Anos do Achamento do Brasil na Assembleia da República”, intervenção do Presidente da Assembleia da República, António Almeida Santos, na sessão solene de boas-vindas ao Presidente da República do Brasil, 8 de Março de 2000, edição da Assembleia da República, 2000, pp. 11 a 15

É o segredo que explica as exíguas quatro linhas da carta de D. Manuel ao Rei de Espanha a anunciar a achamento, perdidas entre um vasto texto sobre a Índia.

É o segredo, conjugado com o pouco entusiasmo exteriorizado por Cabral após o achamento, e com o pouco interesse de início despertado pela boa nova. Só décadas depois a terra achada começou a ser povoada.

São o segredo e os 300 anos de silêncio sobre a carta de Caminha, entretanto desaparecida. É a chocante falta de notoriedade, ao tempo, do feito de Cabral e deste mesmo, logo preterido por Vasco da Gama no comando de uma nova expedição à Índia. Daí o seu exílio voluntário numa quinta em parte incerta do termo de Santarém, antecipando de séculos o retiro para Vale de Lobos do grande Alexandre Herculano.

É enfim o segredo e o facto insólito de Cabral ter sido enterrado em campa rasa, e só mais tarde transladado para a Igreja da Graça, em Santarém, com a seca inscrição do seu nome e nenhuma referência ao seu feito, onde viria a ser descoberto, curiosamente, por um historiador brasileiro, outros três séculos depois!

A Índia era a jóia das ambições e das cobiças. A ela, e aos que contribuíram para a sua descoberta, toda a honra e toda a glória. Títulos honoríficos e copiosas tenças premiaram Vasco da Gama. O esquecimento ou o quase esquecimento foi a paga de Álvares Cabral.

Quem, enfim, o tornou célebre e grande, como hoje se reconhece que foi? A celebridade e a grandeza de que veio a revestir-se a coisa achada: o portentoso Brasil. Perante o milagre da sua unidade, obra prima do génio português e brasileiro; da defesa e do alargamento do seu território, em reiterado desfeiteamento da linha divisória pactuada; tendo em conta o fraccionamento em 18 países da América espanhola; e sobretudo o prodígio da sua tão rica identidade, que fazem dele um caso civilizacional sem paralelo, quis-se naturalmente conhecer melhor quem o descobriu.

“As Comemorações dos 500 Anos do Achamento do Brasil na Assembleia da República”, intervenção do Presidente da Assembleia da República, António Almeida Santos, na sessão solene de boas-vindas ao Presidente da República do Brasil, 8 de Março de 2000, edição da Assembleia da República, 2000, pp. 11 a 15

Para lá disso, um rei poeta que plantou caravelas; um Infante genial e fanático que sonhou impérios; tecnologias de ponta na arte de marear a privilegiar-nos na grelha de partida.

E assim como, segundo alguns, às tantas Deus teria dito «faça-se Newton», terá dito também: «descubra-se a América». Ter-se-iam encarregado disso, como agentes da sua vontade, Colombo, Vespúcio e Cabral. Colombo terá descoberto a hoje América do Norte, supondo que tinha aportado à Índia. E nessa ilusão morreu, apesar de por mais de uma vez ter repetido a façanha. Vespúcio terá chegado até à foz do rio Amazonas, nas igualmente sem saber aonde. Cabral terá atingido Porto Seguro julgando ter aportado a uma ilha.

Se houvéssemos de perfilhar a tese do achamento por erro, ou por acaso, contra a tese da intencionalidade, tudo se teria passado à revelia de uma deliberada intenção. A descoberta do depois chamado Novo Mundo, identificar-se-ia antes com a vontade de um Deus que gostasse de «jogar aos dados».

Sou, claramente, pela tese da intencionalidade. Não, ou não só, porque é a que melhor serve o meu orgulho de ser português. Mas por um conjunto de razões, entre as quais avulta a opção feita por D. João II no Tratado de Tordesilhas, a qual melhor se compreende conhecendo ele as terras a haver segundo a partilha feita.

Os argumentos em contrário encontram fácil contraveneno na política de sigilo praticada pelos reis de Portugal e de Castela. O sigilo valia mesmo em relação a Vaz de Caminha, o prodigioso cronista do achamento? Ou limitou-se ele a colaborar no segredo?

“As Comemorações dos 500 Anos do Achamento do Brasil na Assembleia da República”, intervenção do Presidente da Assembleia da República, António Almeida Santos, na sessão solene de boas-vindas ao Presidente da República do Brasil, 8 de Março de 2000, edição da Assembleia da República, 2000, pp. 11 a 15

Sr. Presidente da República Federativa do Brasil, Sr. Primeiro-Ministro, Srs. Membros dos Governos de Portugal e do Brasil, Srs. Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, Srs. Vice-presidentes da Assembleia da República e Srs. Deputados, Srs. ex-Presidentes das Repúblicas de Portugal e do Brasil, Srs. ex-Primeiros-Minsistros, Srs. Representantes do Corpo Diplomático, Excelências, demais Autoridades Militares, Civis e Académicas, Minhas Senhoras e Meus Senhores: Sr. Presidente Fernando Henrique Cardoso, na pessoa de V. Exa. é o Brasil que nos visita. Imenso como é, o Brasil cabe nesta sala, porque cabe no nosso coração. O coração onde coube e continua a caber o mundo inteiro, porque é o coração de cidadãos de um país que arredondou o planeta, foi universal e para sempre ficou universalista.

A aldeia global começou connosco e ficou dentro de nós. Outros mais cheios de prosápia se deixaram enredar nos quatro cantos de uma visão paroquial do Mundo e da Vida. Nós não! Universalistas pela experimentação e pela fé; franciscanos pelo sentimento; racionalistas e copernicianos pela curiosidade; temerários pela coragem, fomos dos primeiros a furar o futuro como o bichinho sedento do poeta Gedeão.

Porquê da Europa para a China, e não da China para a Europa? Porquê nós?

Predestinação? Favor dos deuses? Simples soma de acasos? Factores vários fizeram de nós um povo único: o enamoramento do mar a aguçar-nos a curiosidade; o desafio do desconhecido a reforçar-nos a temeridade; o caldeamento das raças a robustecer-nos os genes; o encontro das civilizações a enriquecer-nos as capacidades; as lutas da emancipação e da reconquista a endurecer-nos a têmpera; o fervor religioso a fanatizar-nos a fidelidade; a saga norte-africana a acicatar-nos as ambições; o impulso de ir sempre mais além a proibir-nos a resignação; as riquezas da Índia a aguçar-nos a cobiça.

“As Comemorações dos 500 Anos do Achamento do Brasil na Assembleia da República”, intervenção do Presidente da Assembleia da República, António Almeida Santos, na sessão solene de boas-vindas ao Presidente da República do Brasil, 8 de Março de 2000, edição da Assembleia da República, 2000, pp. 11 a 15

O «achamento» de terras da costa ocidental do Brasil, expressão utilizada por Pêro Vaz de Caminha para identificar terras que alguns autores admitem poder corresponder a um encontro de terras procuradas, foi descrito pelo mencionado escrivão na sua famosa carta, que constitui uma autêntica reportagem antropológica sobre os primeiros contactos amistosos dos homens da armada de Pedro Álvares Cabral com os autóctones. Os portugueses viram com a maior estranheza os modos de vida dos tupiniquins que habitavam a região da baía Cabrália formando comunidades semi-sedentárias, nas quais as actividades recolectoras se combinavam com a cultura de raízes de mandioca. Os ameríndios foram então vistos pelos portugueses como seres onde seria possível introduzir a civilização, tal como eles a viam.

A armada de Pedro Álvares Cabral ligou pela primeira vez os quatro continentes, pois partindo e regressando à Europa estabeleceu contactos com a África e o Brasil, antes de atingir a Ásia em 22 de Agosto de 1500.

Os topónimos Terra de Vera Cruz ou Terra de Santa Cruz não se conseguiram impor, pois o nome que veio a prevalecer foi o de Brasil, devido à importância que adquiriu o pau-brasil, cor de brasa, e foi o produto mais importante durante os primeiros tempos da exploração do novo território.

Em 1501-1502 e 1503-1504 duas expedições portuguesas de exploração comandadas por Gonçalo Coelho realizaram o reconhecimento do litoral ocidental do Brasil, a que se poderá acrescentar uma outra expedição em 1502-1503 da responsabilidade de Fernão de Loronha, a qual visava recolher pau-brasil.

Em 1514 foi avistado o rio da Prata.

“Breve História dos Descobrimentos e Expansão de Portugal”, de José Manuel Garcia, Editorial Presença, 1999, pp. 71 e 72

A ler, o artigo com o título em epígrafe, de Maria Manuela Cruzeiro, no blogue “Caminhos da Memória“.

E, também, a réplica de Irene Pimentel, no blogue “Jugular“.

Em carta datada de 30 de Julho de 1514, Estêvão Fróis afirmou que o equador era considerado em termos práticos a divisória das zonas de influência entre Portugal e Castela na América, certamente por se ter observado anteriormente que o equador passava próximo da foz do Amazonas, o que era verdade, pois por aí passavam de facto as 370 léguas a ocidente das ilhas de Cabo Verde e por aí aparece traçada a linha divisória no chamado «Mapa de Cantino» de 1502.

A referida afirmação implicava saber que a linha de demarcação estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas passava pela proximidade da foz do rio Amazonas. Ora uma das hipóteses que se tem colocado e a que já aludimos, é a de que a esta região já em 1498 teria sido enviado Duarte Pacheco Pereira, o qual em 1494 havia sido um nos negociadores do Tratado de Tordesilhas podendo sugerir-se a hipótese de ter sido o conhecimento de terras ou indícios de terras brasileiras, o factor que levou a que D. João II exigisse mais 270 léguas para ocidente da linha de demarcação. O que é certo é que quando em 1498 Cristóvão Colombo saiu das ilhas de Cabo Verde para ocidente ele referiu que tal conhecimento teria sido indicado por D. João II quando negociara o referido tratado. Por outro lado, em 1514 EStêvão Fróis afirmou que Portugal «possuía estas terras há vinte anos ou mais e que já João Coelho, o da porta da Cruz, vizinho da cidade de Lisboa», já fora a terras do Norte do Brasil, onde ele havia ido.

Depois da viagem de Cristóvão Colombo de 1498 tem-se discutido se os navegadores castelhanos Vicente Yañes Pinzon e Diego de Lepe teriam chegado em 1500 a terras brasileiras a oriente da foz do rio Amazonas. Trata-se de um assunto bastante nebuloso e controverso, onde é difícil obter certezas, depois de Duarte Leite e Damião Peres terem apresentado abundante argumentação contra tal possibilidade.

“Breve História dos Descobrimentos e Expansão de Portugal”, de José Manuel Garcia, Editorial Presença, 1999, pp. 70 e 71

Apesar da determinação das longitudes nos séculos XV a XVII ser obtida por estima, o seu cálculo não levava normalmente a erros excessivos, pelo que muitos autores têm admitido que Pedro Álvares Cabral ordenou intencionalmente um desvio para ocidente, com o objectivo de conhecer uma terra de que poderia ter informações de natureza muito imprecisa ou por querer saber se para ocidente haveria alguma terra no âmbito da demarcação do Tratado de Tordesilhas. A tese da intencionalidade do desvio da armada para ocidente tem a seu favor, entre outros argumentos, a informação registada na carta que Mestre João Farras escreveu a D. Manuel de Porto Seguro no dia 1 de Maio de 1500, na qual recomendava ao rei que visse a situação do sítio de onde escrevia num mapa que tinha Pêro Vaz da Cunha, o Bisagudo, e se deduz ser posterior a 1482, ainda que ele fosse incompleto, pois não indicava se aquela terra era habitada. Seria de estranhar que Mestre João estivesse a remeter o rei para uma das ilhas míticas que nessa altura ainda se registavam nos mapas. Devemos observar, contudo, que o eventual conhecimento dessa terra não se encontrava registado na carta padrão do Armazém da Guiné, pois se ela lá estivesse indicada Mestre João Farras não teria de evocar aquele mapa na posse de um particular.

Pedro Álvares Cabral não conhecia a terra situada na região de Porto Seguro onde desembarcou, mas poderia ter recebido instruções no sentido de que, no decorrer da sua navegação, durante a qual necessitava de se afastar para ocidente, forçasse o rumo nessa direcção para verificar se ali poderia haver terras, de que já haveria indicações, nomeadamente no mapa-mundi de Pêro Vaz Bisagudo. Não se pode excluir a possibilidade de haver informações, recolhidas desde, pelo menos, 1493 o período das negociações que levaram a deslocar mais 270 léguas para ocidente a linha divisória acordada no Tratado de Tordesilhas, no âmbito das quais se abarcava o território brasileiro. Como também já referimos, a zona correspondente à foz do Amazonas poderia ter sido já explorada por Duarte Pacheco Pereira em 1498, de acordo com as afirmações que nesse sentido ele faz no seu Esmeraldo de Situ Orbis, e vão ao encontro de indicações expressas pelos Reis Católicos em 1493 e por Cristóvão Colombo em 1498. Quando neste último ano o genovês foi ao arquipélago de Cabo Verde, de onde rumou para ocidente, tinha como objectivo identificar terras que suspeitava serem do conhecimento de D. João II quando este negociou o Tratado de Tordesilhas, tendo sido então que ele descobriu a Venezuela.

“Breve História dos Descobrimentos e Expansão de Portugal”, de José Manuel Garcia, Editorial Presença, 1999, pp. 69 e 70

Um segundo grupo de navios tinha por destino Sofala. Um deles era comandado por Bartolomeu Dias, talvez uma caravela redonda, que se afundou entre o Brasil e o cabo da Boa Esperança. O outro, uma nau ou caravela, capitaneada por Diogo Dias, afastou-se da armada no Atlântico Sul, tendo acabado por explorar o litoral da África Oriental.

A armada partiu do Restelo a 9 de Março de 1500 e a viagem correu normalmente até às proximidades das ilhas de Cabo Verde, sem que houvesse necessidade de aí se proceder a reabastecimento. A armada passou junto da ilha de São Nicolau e rumou depois para ocidente, de forma a apanhar a sul do equador os ventos favoráveis (alisados de sueste), os quais lhe permitiriam atingir o cabo da Boa Esperança, dando assim uma volta idêntica à já traçada por Vasco da Gama. Pouco depois de deixar as águas do arquipélago de Cabo Verde o navio de Vasco de Ataíde perdeu-se misteriosamente, talvez por ter algum rombo, metido água e afundado, sem que nenhum dos testemunhos presenciais da viagem tenha assinalado qualquer anomalia da navegação por essa ocasião.

Por motivos naturais, ligados ao regime de ventos e correntes marítimas em meados de Abril, ou por ordem do capitão-mor, a armada deslocou-se para uma longitude mais ocidental do que aquela que tinha sido atingida por Vasco da Gama e da que seria seguida depois pelos navios que faziam a Carreira da Índia. O desvio foi de tal forma grande que no dia 22 de Abril de 1500 os portugueses avistaram aquele que foi baptizado como Monte Pascoal, situado numa terra que Pedro Álvares Cabral denominou Terra de Vera Cruz e D. Manuel preferiu antes chamar Terra de Santa Cruz. Era o Brasil!

“Breve História dos Descobrimentos e Expansão de Portugal”, de José Manuel Garcia, Editorial Presença, 1999, pp. 68 e 69

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